O Brasil sempre parou para assistir os jogos de sua seleção de futebol. Esse é um dos cordões que unem a diversidade do país. Os relatos sobre a Copa do Mundo de 1950 falavam em “comoção nacional” após o maracanazo – a derrota para o Uruguai na partida final do Maracanã. Era um desses lugares-comuns que pululavam no texto jornalístico antes que o Jornal do Brasil, sob o comando de Alberto Dines, inaugurasse a moderna imprensa brasileira.
Mas, juntando o bordão celebrizado pelo corintiano Lula da Silva com a frase célebre de Winston Churchill, nunca antes neste país tanta coisa dependeu tanto de tão poucos.
O consenso da imprensa já dizia que, ao entrar em campo na tarde de sexta-feira (4/7), a equipe brasileira não estaria carregando apenas a responsabilidade de vencer a partida contra a Colômbia e se classificar para as semifinais do Mundial. O que estaria em jogo, entre as quatro linhas do gramado, desde a abertura do torneio, é a redescoberta de um perfil sociocultural que andava oculto, soterrado por uma avalanche de notícias negativas e assombrado por explosões de descontentamentos por causas difusas e generalizadas. A Folha de S. Paulo, por exemplo, esperava um “maracanazo social”.
Diante dos fatos que desmentem as profecias catastrofistas de uma Copa caótica e sujeita a distúrbios graves, o brasileiro se demonstra cordial, no sentido que deu à palavra o historiador Sérgio Buarque de Holanda – ou seja, afeito a relações de sociabilidade informal que usa a “lhaneza no trato” como forma de arregimentação.
Mas a palavra “cordial” também remete a decisões tomadas “de coração” e não pela razão – e nos eventos ligados à Copa do Mundo também se manifestam as expressões legítimas de fundo emotivo que movem o brasileiro.
Os jornais e os programas noticiosos que ocupam quase toda a grade da televisão por estes dias estão repletos de exemplos, com cenas e entrevistas de torcedores estrangeiros que identificam essa característica do nosso povo.
Ao expressar sua dificuldade em cumprir os ritos sociais de modelo europeu, o brasileiro surpreende com o afeto expansivo e caloroso, que pode ser percebido na curiosidade genuína com que se aproxima dos visitantes.
O espírito-de-porco
A resistência ao formalismo comprometedor das convenções que regem o relacionamento nas comunidades cosmopolitas, nas quais o coletivo se forma pela demarcação explícita do espaço individual, exige o espelho do outro como referência.
No Brasil, somos tribo, e nossa tendência, como sociedade, é idealizar a possibilidade de uma única e imensa taba. Essa natureza tribal desponta ao longo da Copa do Mundo, produzindo o jogo quase infantil das torcidas que se misturam, nomeando, a cada partida, o adversário comum que deve ser provocado, com os chistes e as gozações cujo objetivo é trazer todos, até mesmo os argentinos, para a comunidade informal e descontraída dos adeptos do futebol.
Ao impor uma agenda em tudo contrária a essa natureza, nos meses que antecederam a abertura da Copa do Mundo, a imprensa hegemônica fez uma aposta arriscada na ruptura dessa teia de vínculos sociais que se forma em todas celebrações por estas terras. Como na música de carnaval, tudo pode acabar em cinzas simbólicas na quarta-feira, ou no dia 14 de julho, a segunda-feira que vem depois da partida final no Maracanã.
Mas o mais importante já aconteceu: foi o resgate dessa natureza cordial, a chance de um reencontro do brasileiro consigo mesmo. Percebem-se, aqui e ali, resquícios do espírito-de-porco negativista e ranzinza que se incorporou a certa parcela da população, tida como mais educada e supostamente de renda mais elevada.
Os leitores de jornal são, majoritariamente, integrantes desse contingente de brasileiros que não se sentem necessariamente parte da sociedade onde desfrutam de privilégios. Foi para eles que se dirigiram as mensagens rancorosas da imprensa nos últimos meses, e deles fluiu para o ambiente midiatizado a repercussão do dissenso, contrário ao espírito festivo da maioria.
Os onze que entram em campo são o núcleo dessa história, o foco de todos os olhares e o repositório das esperanças de que a festa poderia ser completa. Mas o triunfo no campo de jogo já não é questão de vida ou morte: o Brasil real, aquele que se encanta com a simplicidade da bola, desfila seu orgulho por aí.
Luciano Martins Costa é jornalista.
Os artigos publicados na seção “Opinião Classista” não refletem necessariamente a opinião da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e são de responsabilidade de cada autor.