Na véspera dos cinquenta anos do golpe civil militar que derrubou o governo de João “Jango” Goulart e instaurou uma ditadura de 21 anos, há um pouco de tudo no Brasil. Há os nostálgicos, há os que se esquecem daqueles tempos maléficos e há os indiferentes, que acreditam que voltar ao passado é algo dispensável. E estes são a maioria – dona de um silêncio muito revelador sobre o pavor crônico dos brasileiros diante de um passado infame.
E há também os poucos – pouquíssimos – agentes do terrorismo de Estado que, por alguma razão, decidiram contar uma parte do que sabem. Dessa forma, a verdade começa, aos poucos, a se desenterrar. Isso ocorre sob o respaldo de uma lei esdrúxula e infame de autoanistia decretada pelos militares no início do declínio da ditadura, e que foi ratificada de forma tão surpreendente quanto abjetamente covarde pelo Supremo Tribunal Federal, há quatro anos.
Entre esses pouquíssimos que agora falam, um – o coronel aposentado do exército Paulo Malhães – o faz com uma tranquilidade assustadora. E ele tem razão: a anistia o protege agora de contar como arrancava os dentes e os dedos dos assassinados para impedir que os corpos fossem reconhecidos. Descreve com uma meticulosidade de jardineiro como abria a barriga dos cadáveres que logo seriam jogados em algum rio, e a precisão empregada na hora de colocá-los em sacos de aniagem, calculando o peso exato das pedras para que flutuassem, sem aparecer na superfície. Admite placidamente sua participação em sessões de tortura e em assassinatos. Disse não saber quantos matou.
Quando perguntado sobre a violência sexual contra presas políticas, desconversou. “Se houve casos de abuso, foram um ou dois”, diz. Há dezenas e dezenas de relatos de mulheres que foram presas e abusadas. Malhães esclarece que, por ele, nenhuma: “Uma mulher subversiva, para mim, é um homem. Foram presas algumas mulheres lindas, mas não me atraíam. Eu as considerava e considero como um inimigo”.
Diz tudo isso na Comissão Nacional da Verdade instaurada por Dilma Rousseff, ela mesma uma ex-presa política que passou por todo tipo de tortura. É um dos únicos, na véspera do aniversário, que assume o que cometeu. Outros, como o coronel também aposentado Alberto Brilhante Ustra, famoso pela forma descontrolada com que torturada os presos, especialmente as mulheres, se dão ao luxo de fazer piadas prepotentes quando são convocados a depor diante da Comissão da Verdade.
Impressiona também a resistência pétrea de militares aposentados em sequer admitir que o que ocorreu em 1964 foi um golpe de Estado. Garantem que jamais houve ditadura: houve uma revolução, que logo se transformou em um regime forte. No máximo, autoritário. Mas ditadura, não.
Talvez também por essa razão que Dilma Rousseff tenha proibido expressamente que se faça qualquer tipo de comemoração da data em instalações militares. A determinação da presidenta não atinge os militares aposentados, que têm seus próprios clubes – é assim que eles os chamam: clubes – para comemorar a infâmia. Para os militares, inclusive para os que não eram nascidos, o que ocorreu em 31 de março de 1964 foi uma revolução para impedir que um regime comunista se instalasse no Brasil. É mentira, e todo mundo sabe.
E tem uma coisa muito esclarecedora, muito simbólica. Na verdade, o golpe aconteceu em 1° de abril. Os golpistas retrocederam o calendário em 24 horas porque, no Brasil, o 1° de abril é o dia dos bobos. O dia da mentira.
Eric Nepomuceno é jornalista. Artigo originalmente publicado na Carta Maior.
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