Desafios à Saúde do Trabalhador com a transversalidade de gênero, raça e juventude

O termo Saúde do Trabalhador surgiu no nosso país no auge do Movimento pela Reforma Sanitária, que se intensificou a partir da década de 1980, tendo, na Reforma Sanitária Italiana, seu exemplo inspirador para impulsionar o debate no Brasil. A união dos esforços de técnicos de saúde ligados às universidades e ao Ministério da Saúde com os trabalhadores, no contexto do novo sindicalismo, estabeleceu as bases desse conjunto de saberes e práticas denominado Saúde do Trabalhador. Ela nasce como contraponto aos modelos hegemônicos das práticas de intervenção e regulação das relações saúde-trabalho da Medicina do Trabalho, Engenharia de Segurança e Saúde Ocupacional.

A modificação da terminologia dos serviços de atenção à saúde de Serviços de Medicina do Trabalho e/ou Saúde Ocupacional para Serviços de Saúde do Trabalhador segue uma tendência mundial nos países que passaram por movimentos semelhantes. O momento culminante de mobilização popular pela saúde do trabalhador no Brasil dá-se na VIII Conferência Nacional de Saúde e na I Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, no ano de 1986. A afirmação do movimento dentro do campo institucional acontece na IX Conferência Nacional de Saúde e na II Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador em 1994.

Consolida-se, dessa forma, como conceito dentro dos textos legais da Constituição de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080) de 1990. Tem-se a seguinte definição legal no artigo VI da lei 8.080: “conjunto de atividades que se destina, através de ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho” (Brasil, 1990).

Apesar de estar definida e normalizada em textos legais, a implantação de fato do modelo proposto para a saúde do trabalhador – que deve surgir os princípios da universalidade, equidade e integralidade, tendo como perspectiva o controle social das políticas e dos serviços de atenção à saúde dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) – enfrenta resistências de vários segmentos econômicos. Somado a isto sabemos que existem todas as dificuldades de implantação do SUS propriamente dito. Trata-se do enfrentamento vivido por todos os setores que dependem de uma intervenção direta do Estado.

Sem ter conseguido estabelecer-se e enraizar-se dentro do sistema público de atenção à saúde, a Saúde do Trabalhador enfrenta a relação capital-trabalho no campo da saúde sem a mediação direta do Estado. Esse é o risco que corre a Saúde do Trabalhador no Brasil e os modelos similares no resto do planeta.

Portanto, a denominação saúde do trabalhador carrega em si as contradições ocasionadas na relação capital e trabalho. As diferentes formas de precarização do trabalho e do crescimento dos acidentes e adoecimentos resultantes do trabalho e as necessidades, daí resultantes, são marcas históricas que sinalizam para a sociedade o lugar desse fenômeno, como produto das relações sociais da sociedade capitalista.

No dia 05.10.13 comemoramos os 25 anos da garantia constitucional da saúde como direito e dever do Estado. A saúde do trabalhador é uma conquista dos trabalhadores. Mas muito precisamos avançar para que este direito se concretize em ações de fato a favor dos trabalhadores. Assim, vamos rumo a 4ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador.

Nas diversas discussões em torno da saúde do trabalhador surge o entendimento que o adoecimento deve ser tratado e que é necessário prevenir novas doenças, privilegiando ações de promoção da saúde. Busca-se programas de saúde que incluam a proteção, a recuperação e a promoção da saúde do trabalhador de forma integrada, e que sejam dirigidos não só aos trabalhadores que sofrem, adoecem ou se acidentam, mas também ao conjunto dos trabalhadores. Essas ações devem ser redirecionadas para se alcançar as múltiplas mudanças que ocorrem nos processos de trabalho, sendo realizadas através de uma abordagem transdisciplinar e intersetorial e, ainda, com a participação dos trabalhadores.

Neste contexto, o grande desafio das empresas, do Ministério do Trabalho e Emprego é o aumento dos níveis de investimento na formação de recursos humanos em matéria de saúde, de higiene e de segurança no trabalho para assegurar o bem – estar do mercado laboral, ausência de fatores nocivos e perigosos no processo de produção.

Se faz necessário entender que cuidar de um trabalhador é um investimento que deve ter um olhar diferenciado. As normas de saúde, de higiene e de segurança no trabalho não devem ser criadas apenas para satisfazer o empregador, mas sim como forma de melhoria das condições de trabalho. Não basta publicar leis. É necessário que as mesmas sejam funcionais e erradiquem as práticas laborais inseguras.

Diante deste quadro, foi fundamental a iniciativa do Ministério da Saúde de instituir a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), através da Portaria MS nº 1.823/2012 (BRASIL, 2012), que estabelece a participação do SUS no contexto da PNSTT, define as diretrizes e a estratégia da atuação do SUS nos diversos níveis para o desenvolvimento da atuação integral em Saúde do Trabalhador, reafirma o arcabouço teórico, o conjunto de princípios e diretrizes da Saúde do Trabalhador e preconiza, de forma explícita, a ênfase na vigilância em seu Art. 2º: visando a promoção e a proteção da saúde dos trabalhadores e a redução da morbimortalidade decorrente dos modelos de desenvolvimento e dos processos produtivos. (BRASIL, 2012).

Ressaltamos a preocupação com o novo modelo de perícia médica, que está em fase piloto em Canoas, na qual fica por conta de que o INSS passe a homologar os laudos particulares dos médicos assistentes no limite de 60 dias. Sem precisar passar por perícia, exceto no acidente de trabalho. Assim, os acidentes típicos não mais passarão pela perícia médica, mas pela área administrativa, que vai determinar o período de afastamento e a data de alta.

Sabemos que o modelo em vigor está superado e que as agências do INSS não conseguem atender a demanda. O INSS está adotando uma perícia burocrática na qual os segurados, em muitos casos, deixam de passar pela perícia técnica. Em vez de humanizar, está tornando cada vez mais artificial a perícia. Na verdade, o órgão tem como único objetivo agilizar para atender a demanda reprimida, compensar a falta de peritos com esta nova metodologia. Mas o problema são as doenças relacionadas ao trabalho. Estas, necessariamente, têm de passar pela perícia médica. O trabalhador se não fizer a perícia e tiver o benefício direto, não terá o reconhecimento do adoecimento relacionado ao trabalho. E, nos casos de doenças crônicas, como LER/Dort, é quase certo que terá alta sem condições de voltar ao trabalho.

Para se ter uma perícia de qualidade deveríamos contar com trabalho em equipe multidisciplinar e trabalho transdisciplinar, realização de concurso público, fiscalização efetiva da atuação do médico perito, definir critérios para os protocolos de atendimento de incapacidade (com orientação clara aos trabalhadores, olhar para a saúde e questões previdenciárias).

No ano de 2010, conforme dados da Previdência Social, de um total de cerca de 720 mil acidentes, mais de 2.500 resultaram em mortes e houve mais de 15 mil afastamentos do trabalho por incapacidade permanente. Tais acidentes também acarretam em impacto orçamentário, tendo sido gastos em 2010 cerca de R$11 bilhões para pagamento de auxílio-doença e auxílio-acidente.

Sabe-se, no entanto, que tais dados representam apenas uma parte do total dos acidentes efetivamente ocorridos, por excluírem agravos não registrados pelas empresas e os sofridos por trabalhadores do setor informal, que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), atingiram 37,4% dos trabalhadores brasileiros em 2009. Além da reconhecida subnotificação, assiste-se ao aumento dos agravos e ao surgimento de novo perfil de morbidade, em especial as Lesões por Esforços Repetitivos (LER) e os problemas de saúde mental decorrentes da reestruturação da economia e da produção.

A Vigilância em Saúde do Trabalhador (Visat) deve ocupar papel central na intervenção sobre os determinantes dos agravos à saúde dos trabalhadores sob a égide do campo da Saúde do Trabalhador. Configura-se como uma estratégica do Sistema Único de Saúde (SUS) para o enfrentamento das situações que colocam em risco a saúde da população trabalhadora, sendo composta pela intervenção articulada em três dimensões: a promoção da saúde, a prevenção das enfermidades e acidentes e a atenção curativa.

Também sabemos que em muitos casos o trabalhador está reabilitado, mas passa retornar ao trabalho na mesma função. Quando ocorre a reabilitação há também a necessidade de realocar este trabalhador. A questão é que as empresas não aceitam esta adequação por avaliarem que o trabalhador não está reabilitado para retorno ao trabalho, independente da função desempenhada na empresa.

Toda esta discussão centra-se no fato do trabalho, no Brasil e no mundo contemporâneo, estar passando por inúmeras formas de reestruturação e consequentemente, provocando diversas modificações nos processos organizacionais, nas formas de trabalho e de gestão, afetando diretamente a vida dos trabalhadores.

As formas atípicas de contrato de trabalho e novas formas de gerenciamento, tem se manifestado através de algumas estratégias como a desverticalização e externalização do processo produtivo, a contratação de mão-de-obra em tempo parcial, o trabalho informal, assim como a reestruturação das jornadas de trabalho, entre outras. Estas formas de flexibilização do trabalho tomam configuração diferenciada e são mais acentuadas quando analisadas a partir do recorte de raça/etnia, geração e gênero.

Estas questões são reflexos de uma estratégia das políticas neoliberais, que tem de ser discutidas não só como uma forma de organização da economia política, mas como um tipo de cultura pelo qual se amplia a sujeição dos trabalhadores e das trabalhadoras, inclusive minando vontades, autoestima e dignidade.

A lógica da flexibilização, na atual reestruturação produtiva do capitalismo, juntamente com a herança do neoliberalismo, estabelece relações também com o crescimento do emprego das mulheres, principalmente em setores mais precarizados. O que vem sendo comprovado por dados estatísticos que indicam que em diferentes setores do trabalho as mulheres são as principais vítimas do trabalho precarizado. Assim como a discriminação de raça.

Foi na década de 70, que no Brasil, ganhou visibilidade, entre tantos outros fenômenos, ao questionamento da democracia racial, com a denúncia do racismo e de casos de violência contra a mulher.

Nos últimos anos, tem aumentado a consciência de que homens e mulheres, brancos e negros vivenciam o mundo do trabalho de forma diferenciada. As discriminações de gênero e raça são fatores que determinam fortemente as possibilidades de acesso e permanência no emprego, assim como as condições de trabalho, incluindo os níveis de remuneração, os direitos e a proteção social a ele associados. Não por acaso, são as mulheres e os negros que detêm os piores indicadores do mercado de trabalho: estão sobre representados entre os/as trabalhadores/as informais e em empregos precários, têm os menores rendimentos e menos acesso à proteção social.

Umas das estratégias para tornar realidade a igualdade de oportunidades para a questão de gênero e de raça, que conformam a maioria da força de trabalho no país – mulheres e negros correspondem a mais de 70% da População Economicamente Ativa no Brasil – é a produção de conhecimentos e reflexões sobre os fatores que determinam e perpetuam estas desigualdades, assim como as estratégias, políticas e boas práticas que podem contribuir à sua superação.

E a juventude trabalhadora? A idade de ingresso no mercado de trabalho é fortemente marcada por desigualdades sociais. Enquanto muitos jovens pertencentes a famílias de baixa renda ainda ingressam no mercado de trabalho antes da idade considerada legal para o trabalho e sem concluir o ensino fundamental, os jovens de renda mais elevada ingressam, em geral, a partir dos 18 anos, principalmente em situações de trabalho protegidas e tendo completado o ensino médio.

A maior parte dos jovens, tanto pertencentes a famílias de mais alta ou de mais baixa renda, se inserem ou procuram se inserir no mercado de trabalho por volta dos 18 anos de idade. A partir desta faixa, a desigualdade se expressa muito mais nas chances de encontrar trabalho e no tipo de trabalho encontrado: os jovens de renda mais elevada estão sujeitos a menores índices de desemprego e a uma inserção mais protegida no mercado de trabalho.

Estes aspectos reiteram a necessidade de políticas públicas de apoio à inserção, particularmente direcionadas para jovens de baixa renda, mulheres, negros, moradores de áreas urbanas metropolitanas e de determinadas áreas rurais.

A informalidade também se apresenta mais elevada entre os jovens quando comparados aos adultos. No interior do segmento juvenil, atinge de maneira mais intensa aos jovens de baixa renda e baixa escolaridade, as mulheres e principalmente os jovens negros de ambos os sexos.

A remuneração do trabalho é mais baixa entre os/as jovens, especialmente aqueles provenientes de famílias de baixa renda, mulheres e negros, e parte deles enfrenta elevadas jornadas de trabalho.

Na trajetória para construção de uma sociedade igualitária, com o foco no trabalho e na saúde do trabalhador, os sindicatos precisam ter poder de fiscalização. O que inicialmente poderia ocorrer via participação nos CEREST’s. Ou mesmo vir estar previsto nas convenções coletivas de trabalho, como ocorre em norma do Sindicato da Construção Civil de Bento Gonçalves.

Nos processos fiscalizatórios se faz necessário que as informações da vigilância em saúde do trabalhador sejam abertas. Tanto para alertas os trabalhadores como para ações preventivas e divulgadas pelos sindicatos.

Também é fundamental os sindicatos denunciarem ao MTE os problemas enfrentados pelos seus representados, para foco específico nos processos de fiscalização.

Fundamental capacitar os trabalhadores sobre legislações, doenças do trabalho e, principalmente, os cuidados na execução de suas funções. Bem como existe a necessidade concreta de buscarmos harmonizar as legislações trabalhistas, sanitárias e previdenciárias.

Em relação às normas regulamentadoras, grande parte não é aplicada na prática como deveria ocorrer em proteção à saúde do trabalhador.

Mesmo com as estatísticas demonstrando que o setor saúde adoece mais de LER e transtornos mentais, a NR32, criada em 2006 e implementada totalmente em 2010, não estabeleceu nenhuma ação específica para os riscos de tais adoecimentos, crítica que deve ser feita de forma pública, pois sua efetividade resta comprometida justamente para as patologias de maior incidência no setor.

Para o tratamento e adequada prevenção dos transtornos mentais, para efetuar a reinclusão laboral dos que sofrem perda funcional e são reabilitados, ou ainda, dos que se afastam por longo período em benefício previdenciário, também há uma grave lacuna na legislação existente. Isto porque a NR4, que define a composição dos Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT’s), além de instituir um número de profissionais bem menor do que exige a demanda do setor, a fim de dar conta de ações preventivas e planejamento estratégico, não prevê a obrigatoriedade de composição multidisciplinar, ou seja, de profissionais de saúde mental do trabalho, como psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais.

E os desafios da classe trabalhadora não param por aí. Ainda devemos nos centrar:

a) Na atuação efetiva por ações contra todo o tipo de terceirização dos serviços (concretamente, contra o PL 4330/04) e precarização do trabalho. E sim por realização de concurso público, com regime estatutário;

b) No posicionamento para coibir a privatização na área da saúde e segurança do trabalhador, garantindo, totalmente, a sua gestão pública e a universalidade da seguridade social, como por exemplo, nas ações para: recompor, com números suficientes, o quadro de Auditores Fiscais especializados em segurança e saúde no âmbito dos ministérios envolvidos e o quadro de técnicos da vigilância em saúde, garantindo o cumprimento do planejamento das ações de fiscalização das condições de trabalho, direcionando-as para as atividades de maior risco de acidentes do trabalho e doenças, deixando de priorizar as ações de caráter arrecadatório e direcionando-as para as ações de promoção da saúde e de prevenção de acidentes do trabalho; manutenção da gestão pública do Seguro Acidente de Trabalho – SAT – e da contribuição para o financiamento dos benefícios concedidos em razão do grau de incidência e prevalência de incapacidade laborativa em decorrência dos riscos ambientais do trabalho;

c) Na discussão de ações que fortaleçam a atenção primária e exijam a compilação, nos sistemas de informação em saúde pelo Sistema Único de Saúde – SUS, todos os dados relacionados aos atendimentos realizados a trabalhadores acidentados e portadores de doenças relacionadas ao trabalho, promovendo a inclusão dos trabalhadores informais nas políticas públicas de saúde e coibindo a subnotificação de ocorrências;

d) Na defesa da carreira única de Estado e redução da jornada de trabalho a todos os trabalhadores;

e) Pela redução de jornada e melhores condições de trabalho.

Imbuídos dos dias marcantes na história da luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e sabedores de que os movimentos sindicais e os movimentos sociais possuem a capacidade de transformar, de lutar por ideais e mudar realidades. Convidamos a todas e a todos para construirmos a 4ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e a 15ª Conferência Nacional de Saúde no entendimento de que, para atendermos as demandas da população e dos trabalhadores, precisamos motivar o retorno das concepções da reforma sanitária que impactam diretamente nos aspectos de inovação da política de saúde.


Debora Raymundo Melecchi é Secretária de Saúde da seção estadual da CTB no Rio Grande do Sul 

Os artigos publicados na seção “Opinião Classista” não refletem necessariamente a opinião da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e são de responsabilidade de cada autor.

 

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