A direita precisa da violência das ruas para exercer a violência que lhe é própria.
“A discussão da violência na política não é trivial. Ela se justifica e pode até ser um imperativo moral, quando se vive numa ditadura desumana. Revoltar-se contra o nazismo era o que deveria fazer qualquer ser humano decente. Mas a violência deixa de ter cabimento quando há Estado de Direito e, além do mais, democrático, com o governo eleito pelo povo – como hoje acontece no Brasil.”
A violência, como conceito descontextualizado, é prima-irmã da barbárie e, deste ponto de vista, é moralmente indefensável, embora seja, do ponto de vista estratégico – da guerra, por exemplo – não só aceitável, como legitimada, ao ser disciplinada por tratados, pelas convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos de 1947, aos quais, por sinal, o Brasil aderiu.
Vale lembrar, ainda, a existência do Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, com competência para julgar e punir aqueles que, na ação, cometem crimes de guerra. Todos os Estados modernos se preparam para a guerra, mobilizando recursos materiais e humanos.
Renato Janine Ribeiro lembra uma violência absolvida pela ordem moral que nos rege: “(…) a que se levanta contra ‘uma ditadura desumana, como a nazista”. Neste caso, a violência que se ergue contra o Estado opressor deriva de um imperativo moral, e, assim, é sancionada pelo senso comum enquanto é condenada aquela outra levada a cabo no ambiente de um Estado de direito, “principalmente quando se trata de direito democrático”.
Exemplo dessa segunda espécie seria a violência que tomou as ruas de nosso país e cujo momento mais dramatizado teve como palco a cidade do Rio de Janeiro, no ultimo dia 6 de fevereiro. A morte do cinegrafista Santiago Andrade, no pleno exercício de sua profissão, não foi, todavia, o pior momento, nem foi a primeira morte estúpida e revoltante. Antes de Santiago morreu a gari Cleonice Vieira de Moraes, em junho passado, em Belém, após inalar gás lacrimogênio lançado pela Polícia Militar em confronto com manifestantes; Fernando da Silva Cândido, manifestante, morreu no Rio em agosto passado, também de complicações respiratórias causadas por gás lacrimogênio; Douglas Henrique Oliveira e Luiz Felipe Aniceto de Almeida, estudantes, perderam a vida em junho do ano passado, em Belo Horizonte, após caírem de um viaduto tentando fugir da polícia.
Pouco antes da fatalidade que levaria Santiago, o ambulante carioca Tasman Amaral Accioly, idoso, foi colhido por um ônibus ao tentar fugir da confusão que se instaurou em plena Central do Brasil, no Rio de Janeiro.
(A lista de vítimas não-fatais é interminável, e compreende ainda a publicitária Renata da Paz Andrade, que perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingida por estilhaço de bomba lançada pelo Batalhão de Choque da PM carioca, quando participava de protesto em 20 de junho último, e Rani Messias Castro, jovem espancada também por PMs no Rio. Na extensa lista de profissionais da imprensa agredidos, temos, por exemplo: a repórter da Folha de S. Paulo Giuliana Vallone, atingida no olho por disparo da Tropa de Choque da polícia de Alckmin, em São Paulo; o fotógrafo japonês Yasuyoshi Chiba, agredido pela PM no Rio e o jornalista Pedro Ribeiro Nogueira, espancado por policiais em São Paulo.)
O professor emérito e autor admirado não se refere à violência que grassa na Venezuela contra governo legítimo, “eleito pelo povo”, como é o caso do presidente Nicolás Maduro. Não está claro o que pensa Janine relativamente aos “idos de junho” que recentemente voltaram à tona no Rio de Janeiro, com o lamentável acidente (acentuo a qualificação) que levou a vida de um profissional da imprensa, como poderia ter sido de um policial (atrabiliário ou não) ou mesmo de um manifestante, “cidadão de bem”, ou de mesmo um black bloc, ou de qualquer um dos vândalos de extrema direita, fantasiados de anarquistas, cuja única razão de ser é dar ensejo à criminalização dos protestos, como sempre quis a classe dominante, assustada com as ruas tomadas pelo povo rebelado com o sistema e seus símbolos.
Para muitos observadores, e Janine é um deles, a violência – ação de grupos minoritários organizados e identificados – é tão gratuita que passa a matizar e qualificar toda a manifestação, em sua essência espontânea e pacífica.
O assassinato do cinegrafista é lamentável e condenável moral e legalmente (e neste último aspecto o aparato estatal está tomando, tempestivamente e com aparente competência, as providências cabíveis no Estado de direito democrático), mas nem por isso pode ser o elemento redutor de um movimento social mais profundo, cujas características, motivos e desdobramentos estão acicatando as interpretações de cientistas sociais e de exegetas em geral.
Recuperando conceitos cristãos e humanitários de um verdadeiro evangelizador, homem de Deus, o arcebispo e intelectual Helder Câmara, mestre Janine condena a “violência” daqueles que recorreram à violência da “luta armada” contra o regime militar brasileiro. O padre, continuo lendo o professor, era contrário a essa violência “dizendo que bom no uso das armas é quem já pratica a violência, a número 1. Vai um estudante de Ciências Sociais vencer no tiro um atirador do Exército? Sem chance!”. E qual a alternativa? A palavra, ensinam-nos Janine e D. Helder.
Penso que a sanção aos meios, no caso, não pode derivar de sua efetividade, mas do dever moral (íntimo, subjetivo) do indivíduo indignado levado a reagir.
Na França invadida, os maquis (em condições abissalmente desfavoráveis em face do exército nazista) optaram pela guerra, a guerra de guerrilha, a sabotagem e, se quiserem, o terrorismo. Assim agiram Mandela e seus companheiros de guerrilha na África do Sul do apartheid. Foram absolvidos pela História, como heróis, quase sempre heróis mortos em combate. No julgamento moral de outros tantos, políticos, militares, intelectuais e civis, a opção mais lógica foi o colaboracionismo. No caso brasileiro, o meio revelou-se, no plano da guerra, da estratégia de combate à ditadura, ineficaz. Mas a ineficiência não lhe suprimiu a razão moral.
É evidente que a violência da guerra destruiu a violência do nazismo, mas não só ele. Foi a violência que garantiu a abolição dos escravos nos EUA da Guerra da Secessão, por exemplo, e foi a violência da Revolução Francesa que doou ao mundo o “século das luzes”. Isso entre tantos exemplos históricos.
Não creio, porém, que tenha sido a “palavra” que derrubou em nosso continente as ditaduras argentina e chilena, para citar as mais conspícuas. Nem as sanguinárias ditaduras de Batista em Cuba e dos Somoza na Nicarágua. Como ignorar prisões, torturas, assassinatos, exílios, banimentos?
Nem foi a palavra, mas foram lutas de libertação nacional que derrotaram as tropas portuguesas na África. Há mesmo um certo idealismo em considerar que a palavra “derrotou o comunismo”. Se a referência é à ditadura soviética, de viés estatista e não socializante, é quase pueril ignorar o papel, este sim revolucionário, da crise econômica abalando em suas raízes aquele capitalismo de Estado, como é injustificável ignorar o papel dissolvente da Guerra Fria e das guerras quentes que o abalado império soviético teve de enfrentar na luta de vida e de morte imposta pelo império americano e seus aliados (OTAN à frente).
Em um ponto, e talvez seja esse o essencial, estamos de acordo: a violência física, na hipótese brasileira, serve, hoje, apenas, aos que pretendem alimentar o discurso e a ação da direita. Mas onde ela está? A violência, no quadro brasileiro de hoje, precisa ser combatida, sim, e a primeira providência é não permitir que a direita protofascista confunda, na opinião púbica, a ação das massas na rua com violência, para que assim acolha a violência do aparato repressivo como simples reação de defesa. Como “violência gera violência”, a direita fascista precisa da violência das ruas para exercer a violência que lhe é própria.
Roberto Amaral é vice-presidente nacional do PSB (Partido Socialista Brasileiro). Artigo originalmente publicado na Carta Capital online.
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