Argumentaram que a revolta foi protagonizada por jovens sem qualquer vínculo orgânico com os movimentos sociais tradicionais. A mídia patronal explorou ao máximo as cenas de vandalismo em que bandos de provocadores – inclusive policiais infiltrados – rasgaram as bandeiras dos partidos de esquerda e das centrais sindicais e agrediram militantes populares.
Numa manobra descarada, a direita midiática e partidária tentou pegar carona nas gigantescas manifestações de rua que agitaram o país para impor a sua pauta conservadora. A negação da política – e da ação coletiva, expressa historicamente pela organização classista – é uma das formas que as elites utilizam para destruir as liberdades democráticas e para derrotar a luta dos trabalhadores. Foi esta a tática seguida por Adolf Hitler e Benito Mussolini para impor a devastação nazifascista na Europa.
Foi este também o discurso usado pelas elites para justificar o golpe militar de 1964. O objetivo era derrotar a “república sindicalista” de João Goulart, presidente democraticamente eleito, para impor a brutal ditadura do capital que arrochou salários, retirou direitos trabalhistas, interveio em sindicatos e prendeu, torturou e assassinou inúmeros sindicalistas. Há muito que o patronato tenta destruir o sindicalismo – inclusive demonizando sua imagem – para poder explorar ainda mais os trabalhadores. Esta é a lógica do capitalismo. A jornada de junho apenas confirmou esta velha tática patronal, que muitos serviçais difundem descaradamente na mídia “privada”.
Para entender a postura do movimento sindical diante da onda de protestos no país é preciso conhecer a sua história. Ela desmente a falácia do “gigante despertou”, que tenta negar a luta secular e heroica dos trabalhadores. Grosso modo, esta história teve quatro fases no período recente. A primeira relembra o período sombrio da ditadura; a segunda mostra a ascensão do sindicalismo nos anos 1980; a terceira aborda a fase regressiva e destrutiva do neoliberalismo; e a quarta abrange a complexa ação sindical no governo Lula, o primeiro oriundo das lutas operárias. Cada fase tem as suas contradições, com avanços e recuos, acertos e erros.
No período do regime militar, instalado com o golpe de 1964 e radicalizado a partir de 1968, o sindicalismo comeu o pão que o diabo amassou. Apenas nos primeiros meses do golpe, 814 sindicatos sofreram intervenção da ditadura, com a imposição de juntas governativas ligadas aos patrões. Milhares de líderes sindicais foram presos e cassados; muitos deles foram torturados e assassinados nos porões das torturas; alguns ainda figuram nos registros como “desaparecidos”.
Para impor a lei do arrocho salarial – que proibia reajustes acima da inflação – e o fim da estabilidade no emprego, os generais baixaram um decreto proibindo terminantemente as greves e os sindicatos passaram a ser vigiados por agentes da Polícia Federal. Para disputar as eleições nos sindicatos, os ativistas precisavam apresentar “atestado de bom antecedente”, fornecido pela ditadura. As finanças das entidades eram rigorosamente controladas pelos agentes do Ministério do Trabalho, que proibiam o uso dos recursos na promoção de lutas e na formação sindical.
Durante quase uma década, os sindicatos viraram cemitérios, sem assembleias, reuniões ou atividades de luta por direitos. Eles foram transformados em repartições públicas, em entidades meramente assistenciais e médicas. A ação sindical neste período representava um ato de heroísmo e coragem e os mártires deste período merecem todo respeito e admiração. Em setembro passado, a Comissão da Verdade, criada pelo governo Dilma Rousseff, reconheceu os brutais crimes da ditadura perpetrados contra centenas de lideranças classistas.
A feroz ditadura, porém, não conseguiu conter a luta dos trabalhadores. Por fora dos sindicatos, várias ações foram organizadas pelo fim do regime militar – através das comunidades eclesiais de base da Igreja, do movimento contra a carestia ou da campanha pela anistia dos presos políticos. Mesmo por dentro das entidades sob a tutela dos militares, muitas lideranças se reciclaram – a exemplo do operário Luiz Inácio Lula da Silva. Aos poucos, o sindicalismo nativo foi se reerguendo.
Em maio de 1978, a greve dos metalúrgicos da Scania, em São Bernardo do Campo, pegou de surpresa a ditadura, os empresários, a mídia e o próprio sindicato. Desgastados pela explosão da inflação e pelo crescimento da luta pela democracia, os generais não tiveram como reprimir os grevistas do ABC paulista. A histórica paralisação abriu as comportas da revolta operária. Em pouco tempo, o sindicalismo brasileiro virou símbolo de combatividade no mundo, ganhando prestígio internacional.
O Brasil passou a bater recordes seguidos do número de greves – de 1979 até 1984. Em 1981, apesar da proibição dos generais, mais de 5 mil ativistas sindicais se reuniram na Praia Grande, no litoral paulista, na 1ª Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat). As pesquisas de opinião passaram a apontar os sindicatos como a segunda instituição mais respeitada pelo povo brasileiro. Várias lideranças perceberam que a luta econômica era insuficiente – combatia os efeitos, não as causas da exploração capitalista – e passaram a dar maior atenção à luta política, por mudanças nas leis e pela conquista de espaços de poder.
Lula se projetou exatamente neste período de ouro, tornando-se a principal referência das batalhas sindicais. Esta vigorosa ascensão da luta dos trabalhadores, porém, não conseguiu conter o tsunami neoliberal e a reestruturação produtiva do capital, que já causavam estragos no mundo inteiro. Com a vitória de Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, o Brasil ingressou na órbita da globalização neoliberal, com o seu receituário destrutivo e regressivo.
* Texto elaborado para o congresso do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente de São Paulo (Sintaema).
Altamiro Borges é jornalista, blogueiro e presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé