De sua vida conheço pouco. O suficiente, porém, para respeitá-lo e nutrir profundo desprezo pelos que tentam depredar sua história e sua honra.
Filho de camponês no interior do interior do Ceará, em pleno semiárido nordestino, conheceu na carne, cedo, a as forças telúricas que o sertanejo pobre precisa arregimentar para sobreviver. Menino ainda, trabalharia com o pai como “cassaco” nas frentes de trabalho do DNOCS, carregando pedra e abrindo à força da enxada estradas de terra, pretexto para dar sobrevida aos flagelados da seca de 1958.
O salário era pago em alimentos e querosene para o lampião.
Pelas mãos de um pároco entusiasmado pela Teoria da Libertação (por onde andará o Padre Salmito?), do qual fôra coroinha, deixa a roça para lutar na cidade grande por melhores oportunidades de sobrevivência digna. Refaz a trajetória atávica de tantos antepassados.
Em Fortaleza, trabalha e estuda à noite em colégios públicos, ingressa na Faculdade de Direito (quando seria aluno de Paulo Bonavides) e é conquistado pelo movimento estudantil, pelo qual se destaca para conhecer a primeira prisão de sua vida severina (severíssima, saberia anos depois): na primeira incursão em defesa da democracia, em uma passeata contra o golpe de 1964 – golpe, relembre-se, maquinado nos quartéis e nos altos círculos do empresariado com destacado dos grandes capitães da grande imprensa brasileira, daquele então e de hoje.
Golpe que, não sabia, naquela altura, o perseguiria até hoje. Quatro anos passados, ainda universitário, é preso no Congresso da UNE em Ibiúna (1968), no interior de São Paulo. Solto, tem a prisão preventiva decretada; sem alternativa, ingressa na clandestinidade e vai travar como lhe permitem as circunstâncias sua luta na resistência à ditadura.
Não sei o que, naquela altura, faziam seus algozes de hoje.
Da luta de massa, ele transita para a resistência armada. Em junho de 1970, filiado ao PCdoB, ingressa na guerrilha do Araguaia. Conhece o inferno e descobrirá que sua vida severina era uma quase-morte. Preso em 1972 pelo Exército Brasileiro, vê-se, clandestino, incógnito, à mercê da humilhação, da ofensa, da degradação física e moral, a ignomínia da tortura a mais insidiosa, implacável, fria, bestial e científica, na qual o pau-de-arara, a “cadeira do dragão” (choques elétricos), o sufocamento, os “telefones” (pancadas nos ouvidos) e os pontapés eram o vestibular do inimaginável em termos de perversão e perversidade.
Foi torturado ainda no Araguaia (e como o foi!), em Brasília e em São Paulo. Preso clandestino, incógnito, verdadeiro sequestrado, sem conhecimento da autoridade judiciária, inteiramente à disposição de seus algozes, sem o amparo sequer da lei de proteção aos animais, invocada nos idos do Estado Novo pelo apóstolo Sobral Pinto na defesa de Prestes. Só não padeceu onde não esteve.
Conheci-o no final dos anos 80 (só em 1977 ele recobraria a liberdade), chefiando eu a assessoria da bancada do PSB na Constituinte liderada pelo inesquecível e saudoso Jamil Haddad, ele um dos mais destacados deputados do PT.
Ex-guerrilheiro, líder radical do Partido Revolucionário Comunista (então uma fração dentro do PT), revela-se conciliador e articulador habilidoso, um dos costuradores de muitas das conquistas que a esquerda brasileira logrou trazer para a “Constituição cidadã”. Torturado por militares, poucos como ele, porém, tanto lutariam pela aproximação entre civis e militares.
Eu o reveria, corajoso, dedicado, na jornada do impeachment contra o ex-presidente Collor, e continuaria acompanhando sua vida parlamentar, voltada à liberdade, à democracia e à defesa da soberania nacional. Distanciava-se do marxismo-leninismo, mas permanecia obcecado pela justiça social, caminhando do esquerdismo para concepções socialdemocratas avançadas. Para o bem das esquerdas em geral, cultivava a crítica de nossas organizações.
No primeiro governo Lula é eleito presidente do PT, em substituição a José Dirceu, e por artes e maquinações que desconheço termina envolvido no chamado escândalo do “mensalão”. Sempre alegando inocência, foi acusado, julgado, condenado e apresentou-se à execução da pena.
É este ser humano (sim, ser humano!) que, para gáudio de seus torturadores impunes, sofre o mais escandaloso, brutal, injusto linchamento moral a que um homem público brasileiro jamais foi submetido.
Não discuto sua culpa nem o mérito da pena após tão longo e tumultuado julgamento, e sei que sua biografia não absolve os erros do presente. Digo que o linchamento não é pena capitulada em nosso Código Penal. Mais do que o justo clamor da opinião pública ferida em seus brios, cansada de tanta impunidade selecionada e sedenta de punição, vejo, na sua execração, uma difusa vendetta. Mais que os erros que lhe são imputados (dessa ainda não suficientemente esclarecida aventura do “mensalão”), pesa sobre sua imagem de hoje a sombra do guerrilheiro do passado. É a este que se pune. A biografia agrava a pena.
Os que não puderam matá-lo (como fizeram com Rubens Paiva, Stuart Angel, Mário Alves, Manoel Alves Filho, Pedro Pomar, Bérgson Gurjão, Joaquim Câmara, Marighela, Herzog e tantos e tantos heróis), os que foram derrotados com a redemocratização, os que perderam todas as eleições, querem a revanche e avançam covardemente sobre o carcará sem asas, já sem garras, já sem fôlego.
No momento em que escrevo, a presa é um homem abatido, um cardiopata com uma aorta artificial, lutando contra crises de pressão arterial. É o cadáver atrasado que, impacientes, reclamam. É nesse homem que batem, um prisioneiro da Justiça, cumprindo pena como devem cumprir todos os condenados. Quem ganha com isso? Que benefícios aufere nossa sociedade com a prática de tratar o oponente político como inimigo, e inimigo a ser abatido, destruído, dilacerado?
Estranhos tempos. Estranha história.
Maluf caminha lampeiro pelos gabinetes da Corte e o torturador Brilhante Ustra saboreia a aposentadoria que a impunidade lhe facultou. Mas José Genoino Neto, um homem pobre após quase sete mandatos de deputado federal, cumpre pena por corrupção.
Estranhos tempos. Estranha história.
Nesta hora sombria, estendo a mão ao homem José Genoino Neto e nego-a aos que lhe jogam pedras, como na Geni de Chico Buarque. Desprezo os linchadores, como desprezo os que se omitem diante de sua dor.
Roberto Amaral é vice-presidente nacional da CTB. Artigo originalmente publicado na CartaCapital online.