Quando os movimentos do ano de 1968 aconteceram, eu era ainda muito criança, só a leitura e a militância política mais tarde deram conta de preencher lacunas e vazios de compreensão, do que considero ser um dos mais belos e fervilhantes anos da juventude brasileira e, também, do mundo. Vendo as manifestações destes últimos dias de junho de 2013, procurei aproximações possíveis entre uns e outros, na busca de compreender o que motiva e mobiliza milhares de jovens em nosso país, a ocupar as ruas, gritando palavras de ordens, repudiando todo tipo de organização e de lideranças, rejeitando toda e qualquer forma de apontar caminhos ou modos de resolver os problemas por eles denunciados, e paradoxalmente defendendo a democracia.
Alguns dirão: aproximações entre esses dois momentos são impossíveis. São tempos tão distintos e longínquos. Já se passou quase meio século. Mas vejamos. Aqueles meninos de 1968 estavam lutando por uma série de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaria as sociedades da época de uma maneira irreversível. Tornar-se-iam o marco para os movimentos ecologistas, feministas, das organizações não-governamentais (ONGs), dos defensores das minorias e dos direitos humanos. Apesar de muitas das reivindicações terem se consolidado ao longo do tempo, muita gente se frustrou, também, pela não realização dos seus sonhos, a maior delas: da imaginação chegando ao poder, e fez com que parte da juventude militante daquela época se desencantasse e abandonasse a militância política. A frase que melhor explicava esse estado de coisas, mesmo que proveniente de diferente contexto seria a máxima marxiana: “tudo que é sólido desmancha no ar”.
Essa segunda metade do século XX, de um lado, demonstrava vontade de passar a limpo, a memória trágica de duas grandes guerras mundiais, a tragédia da guerra do Vietnam que atingiu profundamente a juventude americana, a perversa guerra-fria glamourizada por Hollywood, com ‘Bond! Meu nome é Bond’, e de outro lado, vorazmente, se consolidava a sociedade de consumo, o sistema capitalista e o “way american of life”! A ferro e fogo!
Nesse período no Brasil foi implantada a ditadura militar, que destruiu lideranças, matou, torturou, exilou, fechou os sindicatos, o congresso nacional, extinguiu os partidos políticos. Sucateou a nascente escola pública, interveio na universidade, censurou e proibiu: livros, músicas, filmes, peças teatrais. Construíram-se obras faraônicas, nunca acabadas, cujo maior exemplo, as estradas que levavam do nada para lugar nenhum, em especial, a Transamazônica, desembestou a inflação, a burocracia, a ausência de transparência e de probidade administrativa mãe de primeira hora da corrupção galopante e do desrespeito à coisa pública, enfim, o regime do prendo e arrebento.
Aqui encontramos uma rica aproximação com os movimentos de 1968. Foi nesta metade do século XX que a resistência e a luta democrática “transbordou”, e, nesse transbordamento, derrotamos a ditadura, reconquistamos os direitos e garantias da cidadania. Resistimos cantando em festivais, ocupando as ruas e praças, tomando porrada, mas, resistimos. Elegemos nossos presidentes, governadores, prefeitos, deputados. Antes tivemos que conviver com governadores, deputados e senadores indicados, que o povo criativamente (sempre) apelidou de “biônicos”. Implantamos o estado de direito, reorganizamos a vida partidária, reorganizamos os sindicatos, construímos novas lideranças e consolidamos as instituições. Vinte anos depois fizemos a revisão de nossa Constituição Federal, que se constitui como o estatuto da maioridade democrática em nosso país. Antes, um pouquinho, a sociedade brasileira foi para as ruas e as pintou de amarelo na campanha das “Diretas Já”. Apesar de toda esta mobilização nas ruas, o pacto estabelecido para o resgate do estado de direito, ainda se deu por um colégio eleitoral, que surdo ao clamor das ruas, retardou a plena cidadania. A sociedade brasileira ainda passaria por novos traumas e sustos, produzidos pelos conservadores e reacionários, saudosos das benesses da ditadura, que se mobilizaram para eleger “um jovem caçador de marajás” que depois se revelou o mais corrupto dos presidentes do país, exigindo que toda a sociedade novamente ocupasse as ruas e o depusesse, num processo histórico, o primeiro impeachment no Brasil.
Nesse momento, dos caras-pintadas, podemos encontrar uma aproximação com o movimento atual, quando a juventude cara-pintada também demonstrou pela primeira vez na história brasileira, uma rejeição às organizações e às lideranças constituídas, aos partidos políticos e ao movimento sindical e suas lideranças, A mídia repercutia, lá, como agora, esta situação destacando que as forças políticas tiveram que “correr atrás” dos meninos que pautavam a luta política do país.
Outra aproximação possível, com os movimentos de 1968 pode ser vista, dado que da mesma forma, de que não havia previsão daquele movimento que se caracterizou como uma espécie de furacão humano, uma generalizada e estridente insatisfação juvenil, que varreu o mundo em todas as direções e mudou o mundo de forma irreversível, parece que lá, como agora, muito poucos dos que dele participaram entenderam afinal o que ocorreu. Esse é o risco que se corre neste momento. Que aquele como esse, de tão difuso, torne-se apenas a reivindicação de um novo individualismo.
Ao rejeitar os instrumentos da democracia, arduamente construídos, a partir de muita luta, consegue estabelecer conexões entre opostos tão extremos, que pode beirar o fascismo. Sem dúvida, uma grande conquista desse tempo foi exatamente o reconhecimento da individualidade, o respeito à diversidade e à diferença, mas, se ela não se expressa na coletividade, se esvai, num processo vazio das vontades e vaidades pessoais.
Outra aproximação possível, que se pode fazer é que ao ocupar as ruas do país, a juventude volta, contraditoriamente, apesar de repudiá-la, a fazer política, e a exerce no lugar mais expressivo de uma sociedade, nas ruas, de forma direta, denunciando que existe um descompasso brutal entre o Brasil ser a 5ª economia do mundo e proporcionar à maioria dos brasileiros, condições desumanas de desigualdade sociais, de saúde, educação, mobilidade urbana, enxergando nitidamente que a raiz está na corrupção e no abuso de poder e na ausência de representatividade de lideranças políticas, que teimam em apostar em modelos tradicionais, no curral eleitora e no clientelismo. O movimento das ruas desestrutura todos os arranjos e exige uma profunda mudança do fazer político.
Essas bandeiras sobrepujaram amplamente a pauta restrita do “passe livre” e do aumento das passagens, superou-a em muito, ao se organizar “não apenas pelos vinte centavos”. Colocou de maneira inquestionável em pauta o país. O país que queremos. Cabe a nós, fazer uma grande reflexão acerca desses acontecimentos, precisamos demonstrar que não arriamos nossas bandeiras, apesar da violência dos vinte anos compreendidos entre as décadas de 80 a 2000, que nos exigiu uma luta sem trégua contra o neoliberalismo, contra a flexibilização dos direitos trabalhistas e o desemprego em massa, contra o arrocho salarial – política esta que quase destruiu o Brasil e hoje destrói os países da Europa. Tivemos que nos organizar para enfrentar as práticas antissindicais empreendidas por um judiciário que diminui as condições de organização dos trabalhadores, tirando direitos consagrados na constituição federal, contra uma parte da imprensa que prefere divulgar incansavelmente os maus feitos de uma minoria de jovens e que não amplia os bons-feitos de uma maioria absoluta de jovens que rala e estuda para conseguir um lugar melhor ao sol, pois, para vender, suas páginas precisam jorrar sangue.
Tudo isso, consumiu nosso tempo e nossa energia. Mas, mesmo não sendo desculpas, pois, são fatos concretos do nosso dia-a-dia, devemos reconhecer que em algum momento, falhamos, e se o fizemos, precisamos retomar o nosso caminho, em especial, nós professores, que mais diretamente lida com essa garotada no dia-a-dia. Parece imperioso rever nossos currículos e conteúdos programáticos.
Apesar de tudo, conseguimos derrotar as lideranças neoliberais e eleger, numa ampla aliança, um governo democrático, progressista e popular que elevou as condições de vida, trabalho e salário dos brasileiros a patamares inéditos na história de nosso país. Mas tem gente que ainda não se conforma, e busca se aproveitar das legítimas manifestações das ruas, para desqualificar o movimento social e suas lideranças, criando factoides que não encontram respaldo no atual estado direito que vivemos. Mas, necessário se faz reconhecer, que o governo deve buscar formas de rever programas, projetos e políticas que pouco ou nada têm a ver com a maioria da população brasileira que anseia por mudanças efetivas e rápidas. Um país capaz de produzir obras de altíssima qualidade, como as que foram e estão sendo realizadas para a Copa do Mundo, pode e deve, também, realizar uma educação e uma saúde no mesmo padrão e com os mesmos níveis de exigência.
E o melhor caminho, é o de fazer política, a boa política. Aquela que seja capaz de resgatar o brilho nos olhos pelo muito já conquistado, que não permita nem a sua banalização e naturalização, fenômenos tão comuns de nossa sociedade pós-moderna, que conseguiu elaborar formas sofisticadas de comunicação, como a internet e as redes sociais, que para nossa surpresa e alegria, levou as novas gerações, a saírem detrás de um monitor, para vivenciar a experiência de que é melhor estar nas ruas, e encontrar o olhar amoroso e solidário dos colegas de classe, em todos os sentidos.
Cabe a nós, contar para nossos meninos e meninas, que seus sonhos, são nossos sonhos e que com eles, estaremos mais fortes para resgatar os valores históricos-crítico-culturais da humanidade, em busca de uma sociedade onde um ser humano não seja explorado por outro ser humano. Parece velho, mas a meninada atualizou. Benditos Sejam!
Márcia Machado é mestre em Educação pela UFES, vice-presidente nacional da CTB e secretária-geral do SINPRO-ES.