“…e quando finalmente a esquerda chegou ao governo tinha perdido a batalha das ideias”.
Perry Anderson
A frase de Perry Anderson (editor da “New Left Review”), tomei-a de um texto de Emir Sader (‘Neoliberalismo x posneoliberalisno na America Latina’), referia-se à França – à pobre França do Partido Socialista de François Hollande – mas poderia referir-se à Espanha (a pobre Espanha do Partido Socialista Operário Espanhol), ou à Itália na qual a preeminência política do Partido Comunista Italiano, o PCI de Gramsci e Togliatti – ‘o maior partido do Ocidente’ – foi substituída pela era Berlusconi, o grotesco. Mas, e é o que nos interessa, a observação se aplica igualmente ao Brasil de hoje, após a queda da ditadura (1984) e a derrota eleitoral do neoliberalismo conservador (2002/2006/2010), derrota a qual, todavia, não se propagou para o campo da política.
Ao contrário, e apesar do agravante constituído pela tragédia europeia, é a visão neoliberal, reiteradamente desmentida pela realidade, que domina o debate, o noticiário e até mesmo ações de governo.
Em pleno 2013, a tese do candidato das oposições é retomar as privatizações de FHC. Qual é, agora, o objeto da sanha, se pouco nos sobrou: a Petrobras? O Banco do Brasil? A Caixa Econômica?
Nosso atraso ideológico vai beber água nas circunstâncias em que se deu a redemocratização.
Refiro-me ao fato de a ditadura haver conseguido transformar a ruptura necessária em transação negociada, assumindo o papel de sujeito do processo, e assim contendo em suas rédeas a transição ‘lenta e gradual’, nos termos da equação do general Geisel, que compreendeu uma reforma política reacionária, que sobreviveu à própria Constituinte em dois aspectos essenciais: a ampliação das bancadas que representam os estados menos populosos, distorcendo mais ainda o princípio democrático que estabelece que a cada cidadão deve corresponder um voto, e a obrigatoriedade de remunerar os vereadores, transformando-os nos indivíduos mais bem remunerados na maior parte dos municípios do País.
Aquela reforma teve como fruto perene a entronização do ‘baixo clero’ como principal bancada da Câmara dos Deputados, permeando todas as legendas nela representadas. Até aqui.
A sociedade resistiu durante 20 anos à ditadura, o movimento das ‘diretas-já’ –verdadeiro não plebiscitário à ditadura – terminou por implodir o Colégio eleitoral e derrotar o candidato do regime, mas os termos da ‘transição’ foram concertados entre generais e políticos autoimitidos no mandato de delegados da sociedade brasileira. O povo, em nome do qual tudo foi feito, teve de contentar-se com o papel que lhe reserva sempre uma História comandada pelos interesses da classe dominante: a plateia.
Por tramas do processo histórico, a esquerda não teve condições de conduzir o debate, e esse, paulatinamente, é dominado pelo pensamento neoliberal, ao qual aderem, primeiro, setores liberais que vinham da luta contra a ditadura, em seguida setores atrasados da própria esquerda, uns interessados em ocupar espaços na nova nomenclatura, outros, assustados com os ventos que sopravam do Leste, a partir da Queda do Muro de Berlim.
O Ocidente acenava com as vitórias de Thatcher, Reagan e, a seguir, Tony Blair. A desmontagem dos Partidos Comunistas em quase todo o mundo, e no Brasil a implosão do Partido Comunista Brasileiro (o ‘Partidão’) a que se seguiu a contrafação do PPS, foram um elemento a mais no arrefecimento da reflexão marxista.
Estavam criadas as condições propícias à ditadura do pensamento único. O imperialismo, dominante na política, dominante a cultura, na língua internacional, na linguagem tecnológica, na literatura, no cinema, na televisão, na globalização do american way of life, dominante do pensar, domina principalmente onde não precisa da força de suas tropas. Dominava e domina no plano ideológico, dominando corações e mentes.
Entre nós, de um lado a crise do movimento sindical e a astenia da Academia; de outro, o monopólio da informação e da opinião, professada por uma imprensa monopolizada ideologicamente. Todos os jornais, reproduzindo as mesmas opiniões, se julgam ‘algo mais que um jornal’. O reacionarismo, o antinacional e o antipopular, o primitivo, o antidesenvolvimentismo, a superveniência do que vem de fora, a alienação, a superstição, o atraso, o não-Brasil são a característica ideológica de uma imprensa militante, hoje o principal partido político brasileiro.
Falo da televisão, do rádio e da imprensa escrita.
Falo de sua programação, de seu conteúdo, não apenas da desinformação dos noticiosos.
Não avanço o sinal mesmo quando afirmo que a grande imprensa brasileira é racista e de direita, à direita mesmo do empresariado nacional.
As palavras são do mais conspícuo representante do pensamento autoritário conservador brasileiro, o ministro Joaquim Barbosa, em recente conferencia na Costa Rica. Some-se a tudo isso a aliança entre a falsa fé religiosa (explorada mercantilmente no nível do charlatanismo) e a política partidária, uma se servindo da outra e ambas, a fé politizada e a política explorando a fé, alienando a população que subjuga ideologicamente para melhor explorar, construindo impérios econômicos e midiáticos e partidos políticos que vão disputar as entranhas do poder.
E as esquerdas, e os governos progressistas, como o avestruz da fábula que enterra a cabeça para não ver o perigo, fazem de conta de que nada veem, a se dizerem, empolgados por algumas vitórias eleitorais, que essa imprensa ‘não faz mais opinião’.
Não quero suprimi-la, nem mesmo diminuir sua força. Reclamo, apenas, o contraditório.
Mas essa imprensa é a única opinião a trafegar e é por seu intermédio que até os militantes dos partidos de esquerda se informam e muitos se formam. E eis como muitos setores da esquerda brasileira passam a incorporar valores da direita e a reproduzi-los, pensando em posar de ‘moderna’. Em nome da governabilidade, nossos governos são obrigados a compor com a direita, pois só caminhando à direita é que a esquerda soma votos.
E, por essas artes, entramos todos a falar em choque de gestão, em lucratividade (sim, até a previdência social deve dar lucro!), em ‘métodos científicos’ de administração, em eficiência do setor privado, em despolitização da administração pública, em gigantismo do Estado, em excesso fiscal, em baixar a maioridade legal para 16 anos, em mais jovens negros e pobres na cadeia a título de política de segurança.
Quem dorme com morcego acorda de cabeça para baixo, diz o povo.
Os partidos de esquerda fogem do debate ideológico, ensarilham suas teses, saem de campo, tudo em nome da conciliação.
Os Programas e Manifestos são reservados para as dissertações de mestrado. Nada de confronto, nada de enfrentamento, como se a paralisia pudesse ser instrumento de avanço, e assim terminam reforçando o statu quo. Qual seu papel pedagógico e doutrinário no Congresso, nas Assembleias e nos governos?
Silentes, acovardadas nossas esquerdas permitem que a direita, sucessivamente derrotada nas urnas, estabeleça a pauta nacional, e nela nos enredamos: ‘mensalão’, redução da menoridade penal, violência, fracasso da política, fracasso dos políticos… o eufemismo de ‘fracasso da democracia’.
No governo e fora dele, os partidos socialistas não falam mais em socialismo, governo e partidos de esquerda passam a operar a ‘conciliação de classes’ com a qual acenam para a grande imprensa e o sistema financeiro. Nos sindicatos, a ‘política de resultados’ substitui a luta política ideológica. O somatório de tudo isso – e assim se descortina o cenário da emergência do pensamento de direita – é uma Justiça reacionária e um Supremo afoito, tentando judicializar a política, e, ao arrepio da Constituição, assumindo funções legislativas, ademais de condicionar a vida interna de um Congresso acuado.
O próprio presidente do STF, de novo o inefável ministro Barbosa, aliás de forma coerente, agride a vida congressual e os partidos, sem os quais não haverá democracia alguma em nosso país. E sabe disso. E por saber é que fala essas coisas. Cumpre, assim, a tarefa que lhe cabe nesse festival de agressões ao processo democrático: embala os sonhos de uma classe média reacionária em busca de um novo redentor.
O debate das eleições de 2010, lamentavelmente ditado pela direita, concentrou-se, num primarismo digno da TFP, num sim e num não ao aborto. Qual a nossa proposta de debate para 2014?
Roberto Amaral é cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004 e vice-presidente do PSB. Texto originalmente publicado no site de “CartaCapital”.