Em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS), de que o Brasil é membro, retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças. Foi uma decisão importante, de força simbólica inegável – e com desdobramentos muito positivos, inclusive no campo jurídico. Antes e depois desse marco, organizações de psiquiatras de vários quadrantes adotaram resoluções que contribuíram para retirar o manto de preconceito e ignorância sobre essa orientação sexual.
A Associação Brasileira de Psiquiatria manifestou-se contra a discriminação já em 1984, e em seguida o Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a homossexualidade um desvio. Mais que isso, em 1999 o CFP estabeleceu normas de conduta para a categoria, determinando que psicólogos não poderão oferecer “cura” para a homossexualidade – visto esta não ser um transtorno -, e evitarão “reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica”.
Essas decisões merecem aplauso, na medida em que, anulando suposta fundamentação científica para práticas discriminatórias, contribuem para a redução do preconceito, da rejeição e da violência contra seres humanos baseados na sua orientação sexual. Como afirma o psicanalista Contardo Calligaris, as terapias de reorientação ou reconversão, hoje, são defendidas só por associações ou indivíduos inspirados por condenação moral ou religiosa da homossexualidade.
É esse tipo de aposta na chamada “cura gay” que, infelizmente, ainda inspira propostas como o Projeto de Decreto Legislativo nº 234/11, de autoria do deputado João Campos, que ora tramita na Câmara dos Deputados. Evitando analisar-lhe o mérito, o Projeto propõe sustar o trecho da Resolução nº 1/99 do Conselho Federal de Psicologia que estabelece normas de atuação para os psicólogos no tocante ao tema da homossexualidade. Em sua justificação, o parlamentar argumenta que o Conselho “extrapolou o seu poder regulamentar”.
Trata-se de percepção totalmente equivocada. Basta lermos a lei nº 5.766/71, que cria o CFP, para percebermos que a referida Resolução, goste-se ou não dela, se enquadra estritamente nas atribuições legais dessa autarquia, a quem cabe, por exemplo: orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de psicólogo; expedir as resoluções necessárias ao cumprimento das leis em vigor; e definir nos termos legais o limite da competência do exercício profissional. Além disso, cabe ao Conselho penalizar a prática de “ato que a lei defina como crime ou contravenção”. Ora, o Código Penal define como crime o charlatanismo, e trata-se de charlatanismo – descarado – vender “cura” para doença inexistente.
Estou certo, portanto, de que o projeto nº 234/11 terá vida curta, e irá naufragar na própria inconsistência. Servirá, tão somente, para expressar o incômodo de uma parcela da sociedade, aquela que vai ficando para trás, com os passos que o Brasil vem dando em direção à universalização dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos em nossa Constituição.
É fundamental o respeito a todos os credos, como também à sua ausência. Entendo que vivemos em um Estado laico e que temos o direito de seguir, nessa matéria, nossa própria consciência. Porém, defender a igualdade de direitos é uma luta de todos nós.
Beto Albuquerque é deputado federal, líder do PSB na Câmara. Artigo originalmente publicado em “O Globo”.