As meninas e o trabalho doméstico infantil

Aprovada em abril de 2012 pelo Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), sobre o trabalho doméstico, enfim se supera mais uma das desigualdades entre os trabalhadores. Agora é regulamentar uma  conquista realizada pela luta das trabalhadoras domésticas e uma  ampla articulação feita nestes últimos anos, fruto de um período marcado pela construção de um governo democrático e popular.

Viramos  mais uma página, resquício da escravidão. No entanto, vivemos ainda uma situação dramática para uma parcela significativa dessa população, que são as meninas (crianças) trabalhadoras domésticas. Elas são invisíveis, estão no âmbito privado, seus trabalhos são realizados no interior das casas, sem controle de seus pais ou responsáveis e na maioria das vezes longe de suas famílias, podendo ou não receber alguma remuneração, forçadas a uma vida   adulta antes dos 18 anos – idade mínima permitida para o trabalho segundo o artigo 3º da Convenção 182. Segundo a OIT, são oito os tipos de risco que elas ficam expostas:  longas horas de trabalho, trabalho físico pesado, abuso físico ou emocional, abuso sexual, deficientes condições de vida, salários baixos ou in natura, falta de oportunidades educativas, falta de oportunidade para o desenvolvimento emocional e social.

A exploração da mão de obra infantil também  traz consequências à saúde, que se farão sentir na vida adulta, como  afecções músculo-esqueléticas (bursites, tendinites); contusões; fraturas; ferimentos; queimaduras; ansiedade; alterações na vida familiar; transtornos do ciclo vigília-sono; deformidades da coluna vertebral; síndrome do esgotamento profissional e neurose profissional; traumatismos; tonturas e fobias, segundo dados da fundação Telefonica/Ibope Inteligencia.

Para a psicóloga infantil Patrícia Serejo, crianças que são submetidas ao trabalho podem carregar problemas emocionais profundos, equivalentes a veteranos de guerra e pessoas torturadas.

É fato que o trabalho infantil impõe à criança uma responsabilidade que não lhe pertence. Deveria ser natural encarar que a criança, em fase de formação, tem que ser sustentada e protegida e não se sustentar. Porém não é assim. O trabalho infantil doméstico é visto pela sociedade como “natural” para a criança pobre, o que  não ocorre para os filhos da camada média e rica da sociedade, ficando claro que se trata de uma questão de classe .

O trabalho infantil nada tem a ver com o necessário aprendizado da criança em suas relações familiares, que a socializem, promovam a solidariedade, os cuidados que podem e devem acontecer no âmbito familiar.  Aliás, educar as crianças, meninas e meninos, para que elas não reproduzam a sociedade machista e de exploração, pode começar a partir da própria casa, mas sobretudo através da educação que precisa problematizar em seu currículo os direitos da criança, em todos os níveis de ensino.

Infelizmente a cultura geral que temos é que é da responsabilidade  da mulher, da mãe, cuidar do âmbito doméstico, da casa, dos filhos, do marido, dos velhos  e assim vai se reproduzindo esse círculo vicioso, perpetuando a cultura da inferioridade da mulher e seu confinamento ao âmbito privado. Porém, cada vez mais elas estão no mercado de trabalho, têm maior escolaridade, mas com dupla jornada e a maioria delas acha natural que, para além do seu trabalho, dar conta das tarefas domésticas, sem se dar conta da opressão que sofrem, a partir de um senso comum: “é a obrigaçao  da mulher”, “é visto como natural que ela faça”. Afinal, “ser mãe é padecer no paraiso!” (sic). Para as que são somente donas de casas, essa realidade é ainda pior, pois é vista como totalmente disponível, tem todo o tempo do mundo para cuidar de tudo e de todos, invísivel, desvalorizada pela própria família, perde a sua própria individualidade ao manter o bem-estar de todos e todas, menos o seu.

O que leva as meninas ao trabalho? Podemos dizer que antigamente e  hoje o motivo é o mesmo: a luta pela sobrevivência e pela necessidade do consumo, de inserir-se na sociedade capitalista. Normalmente a propria mãe, na luta para manter a casa, é chefe de familia e também coloca sua filha para o trabalho por necessidade, para somar uns trocos para tocar a vida.

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação Infantil lançou neste ano  o cartaz “Tem criança que nunca pode ser criança” (clique aqui para ver).

O  trabalho infantil doméstico é visto mais como uma caridade do que como uma exploração. As crianças são levadas com o discurso  de que vão ser “protegidas” ou para ter “oportunidade de estudar” e a realidade revela ser um discurso para justificar a exploração da mao de obra infantil.

No Brasil são 3.406.517 de trabalhadores infantis. Mais de 700 mil crianças e adolescentes de 10 a 13 anos ainda são vítimas de exploração em 2010, segundo levantamento da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) do IBGE. Dessas, cerca de 59% estão na área urbana e 41% na área rural. Ainda segundo a PNAD, entre as crianças e adolescentes que prestam serviços domésticos, 93% são meninas e, dessas, mais de 60% são negras.

Erradicar o trabalho infantil está intimamente ligado ao combate à pobreza e à inclusão no sistema educacional, que garanta a oportunidade a seu ingresso e permanência até completar sua formação plena. Aqui encontramos outro problema, pois o sistema educacional é despreparado e omisso quando detecta o trabalho infantil, em todas as suas formas.  Estudo de pesquisadores das Universidades Federais da Paraíba e de Pernambuco publicado na revista “Psicologia e Sociedade”, em 2011, mostrou que 80% das crianças que faziam trabalho doméstico já tinham sido reprovadas; metade dessas crianças atribuíram as dificuldades de desempenho a dificuldades de relacionamento ou adaptação, e 26% delas citaram expressamente o trabalho como fator principal. Sem preparo, o futuro profissional dessas crianças e jovens acaba seriamente comprometido.

Outro  enfrentamento a ser feito pelo Ministerio do Trabalho Emprego é a fiscalização, pois para adentrar aos domicilios, a partir da denúncia, é preciso mandato judicial.

Os conselhos tutelares a partir da denuncia também podem cumprir o papel de esclarecer e coibir essa prática, como por exemplo encaminhando as crianças para a bolsa do Programa de Erradicaçao ao Trabalho Infantil (PETI), hoje junto à Bolsa Família,  em seu municipio. Detectamos que é preciso, para além de sensibilizar, dizer claramente que quem emprega a mão de obra infantil comete um crime, e está sujeito às penalidades da lei.



Márcia Regina Viotto é socióloga e assessora da CTB.

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