Dia 06 de dezembro de 2012, plenária do Supremo Tribunal Federal. Joaquim Barbosa, sorrindo, rebate Lewandowski, revisor da ação penal 470, que acabara de concluir seu voto.
“Nos Estados Unidos, esta situação jamais aconteceria, porque o parlamentar teria renunciado antes, tal a força da opinião pública e dos meios de comunicação”, diz Barbosa, de pé, as mãos apoiadas na poltrona bége, espaçosa, de costuras quadriculadas.
Argumento esdrúxulo, porém extremamente sugestivo acerca de seu pensamento, e que vale tanto mais por ter sido pronunciado de improviso, por um Barbosa ainda algo perplexo pela convicção firme com a qual Lewandowski havia defendido o princípio da separação dos poderes e o direito constitucional do Congresso de ter a palavra final sobre a cassação do mandato de seus membros. O revisor terminara seu voto mencionando o “self-restraint”, a autocontenção da suprema corte dos EUA, que sempre cuida de jamais ultrapassar os limites de seu poder.
O que pretendia dizer o presidente do STF? Que a corte suprema americana não cassa parlamentares corruptos porque entrega o serviço à mídia?
Ora, a mídia americana é, de fato, poderosíssima, mas não acho que haja nenhuma doutrina democrática neste sentido. A corte americana não caça parlamentares simplesmente porque respeita o Congresso, e o vê, conforme diz a doutrina, como o agente sagrado da soberania popular.
O debate ora em curso, sobre o direito ou não do STF de cassar parlamentares, é de extrema gravidade, pois se a corte entender que sim, que tem direito de se sobrepor ao juízo do Congresso e ao voto popular, e cassar o mandato de um senador ou deputado, então completar-se-á um perigoso ciclo de “novidades jurídicas” trazidas pelo julgamento da Ação Penal 470: condena-se sem provas, depois se cassa o mandato de parlamentares. Ou seja, o nosso STF sairá do julgamento como uma espécie de supertribunal revolucionário. E revolucionário naquele sentido que os militares usaram em 64, quando tomaram o poder.
Felizmente, já temos quatro juízes que entenderam a gravidade da situação, e fizeram discursos contundentes em defesa da soberania e independência do Congresso Nacional. Lewandowski e Rosa Weber, particularmente, emitiram votos brilhantes.
Lewandowski lembrou que a inviolabilidade dos mandatos parlamentares é uma garantia nascida da revolução francesa, período no qual se decretou uma lei que condenava duramente juízes que tentassem interferir na condução da república através de perseguições contra deputados representantes do Terceiro Estado.
Eu lembraria ainda do surgimento dos tribunos romanos, que são os antepassados dos deputados atuais. Eles também gozavam de total inviolabilidade.
Esta condição dos tribunos e parlamentares nascia naturalmente do entendimento de que o judiciário não é uma instituição isenta, como não é até hoje. Deveria ser, mas não é, porque formada de homens. E como tais – e por serem poucos – podem ser facilmente arrolados por um conspiração, explícita ou não, e usarem de seu poder para agredir ou usurpar um poder que não lhes pertence. Como um juiz que alcançou sua posição sem precisar de um voto pode se arrogar o direito de cassar o mandato de um parlamentar que recebeu 100, 200 mil, um milhão de votos?
Impressionou-me a fluência intelectual da ministra Rosa Weber, o que me alegrou, por um lado, por ver que os juízes não cederam, totalmente, à sanha persecutória que preside esta ação penal. Entristeceu-me, todavia, ver que boa parte de sua atuação, neste mesmo processo, deveu-se não à falta de visão, mas por pura covardia em afrontar as massacrantes pressões midiáticas.
Seja como for, estamos diante de um momento crucial, porque poderá acarretar numa jurisprudência extremamente danosa à soberania do Congresso e, portanto, à democracia. Onze juízes sobrepor-se-ão ao poder de centenas de milhões de eleitores, que em tese deveriam governar a si mesmos através de seus representantes.
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No capítulo 58 dos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel faz uma defesa apaixonada e corajosa do bom senso do povo, em detrimento daquele revelado pelos príncipes. Ele inicia o capítulo advertindo que dirá uma coisa fora do senso comum: que o povo, mesmo ao cometer erros, costuma ter, geralmente, opiniões mais prudentes e sábias que os príncipes. O preconceito contra o povo, dentre outras causas, pode ser explicado porque “se pode falar mal do povo sem medo, mesmo que este esteja no poder (numa república); de príncipes se fala sempre com muito medo e respeito”.
O argumento vale para os dias de hoje. Todo mundo sente-se muito à vontade para xingar o congresso, onde trabalham os representantes do povo, mas ninguém – com exceção de blogueiros e militantes – tem coragem de fazer o mesmo dos barões da comunicação social.
Maquiavel nota ainda a diferença entre o ódio do povo, quase sempre direcionado aos que, segundo ele, roubam o bem público, do ódio dos príncipes, que odeiam quem ele acha que pode privá-lo de algum bem privado. Isso explicaria o ódio de setores da elite, que vêem a democracia econômica trazida pela era Lula como uma usurpação do que achavam ser privilégios apenas seus, como viajar de avião, passar o fim de semana em Paris, comprar um automóvel.
No capítulo 46 do mesmo livro acima citado, Maquiavel faz observações sobre a ambição humana, e que me levou novamente a pensar na situação política brasileira. O pensador italiano pondera que um determinado setor social, sempre que obtém um novo poder, tende a se assoberbar, e a agredir os outros. “Como se fosse necessário ofender ou ser ofendido”.
É o que acontece aos ministros do STF. Blindados pela mídia de qualquer crítica, tornaram-se soberbos, e passaram a não mais ter freios nos ataques que desferem contra o Legislativo. Isso é perigoso. Primeiro, condenam sem provas; depois, cassam mandatos sem terem o direito de fazê-lo. Até onde pensam ir?
Miguel do Rosário