“Temos de parar de dizer que somos a maior democracia do mundo. Sequer somos uma democracia. Somos uma república militarizada.”
– Gore Vidal
Ainda quando os EUA consagravam o apartheid, quando os negros não podiam dividir com os brancos o mesmo banco de ônibus, o mesmo banheiro público ou a mesma calçada, coisa de pouco mais de 40 anos passados, dizia-se, aqui e em todo o mundo, que a norte-americana era ‘a maior democracia do Ocidente’. Essa democracia deixou de consagrar o racismo, é verdade, mas se curva tanto à ausência de povo quanto à predominância do poder econômico.
São duas as suas principais características de hoje, a abstenção da cidadania, e a presença sufocante do grande capital, seu maior protagonista.
O grande público brasileiro, mesmo os apenas leitores dos jornalões e das revistonas, terá percebido que a grande crise dos EUA é política. Naturalmente imperceptível às análises dos ‘cientistas’ midiáticos, essa crise é alimentada pelo rotundo fracasso de sua democracia representativa, corroída por um sistema eleitoral arcaico, venal, mercantilizado e corrupto, e por um presidencialismo artificialmente bipartidário, que imobiliza as forças políticas e constrói os impasses que paralisam Congresso e Casa Branca em face dos problemas mais cruciais.
A propósito, o primeiro mandato de Obama foi uma corrida de obstáculos, em que a reforma do sistema de saúde foi simplesmente um episódio. Diferente não será este segundo, haja vista, por exemplo, o conflito entre um Executivo democrata e uma Câmara dos Representantes de sólida maioria republicana. Com quais forças políticas o Presidente pode dialogar no Congresso, para, por exemplo, enfrentar o abismo fiscal (fiscal cliff), que ameaça os EUA com o espectro da recessão representada por uma promessa de queda do PIB entre 3 e 6%, se não houver acordo até janeiro?
Esse mesmo bipartidarismo que divide ideologicamente a sociedade norte-americana, constrói o fosso do presidencialismo e aprofunda a divisão do país entre pobres e ricos.
Salve o nosso criticado ‘presidencialismo de coalizão’ que, democrático, consagra o entendimento político; salve nosso pluralismo partidário, que enseja a sobrevivência das minorias e a expressão do mais vasto mosaico ideológico e, sempre, a alternativa do entendimento político; salve nosso sistema proporcional que impede a ditadura das maiorias ocasionais, fruto do voto distrital, pelo qual tanto anseiam, entre nós, a direita consequente e os liberais alienados.
As recentes eleições demonstraram que a democracia norte-americana renega a si mesma quando, como hoje, é dominada pelo dinheiro, pelo poder das grandes corporações que, financiando as campanhas, escolhem os futuros eleitos e comandam o processo eleitoral – desde as primárias, uma farsa dentro da farsa maior. Nem mesmo o mais obtuso dos néscios terá tido dúvida sobre quem seria o candidato dos democratas ou dos republicanos nessa e em qualquer eleição presidencial dos EUA. No entanto, antecipando-se, à eleição propriamente dita, foram gastos milhões de dólares nessa fantasia e o grande concurso passou a ser quem arrecadaria mais.
É a festa dos lobbies – inclusive da direita militarista-expansionista israelense –, de Wall Street e das corporações definindo, de fato, com o aporte financeiro, o conteúdo dos mandados dos eleitos, a saber, a defesa de seus interesses. As eleições são decididas fora do espaço eleitoral-legal, cabendo ao eleitorado, como lembrava Gore Vidal, “escolher entre o analgésico A e o analgésico B. Mas ambos são aspirinas”.
Assim se vê que, contra a ideia liberalóide de democracia universal e intemporal, a realidade constrói o conceito de democracia historicamente determinado. Nesta hipótese podemos adotar o conceito expresso por Bresser-Pereira em recente artigo na FSP (5.11.12). A ‘democracia’ norte-americana é ‘uma democracia parada no tempo’.
Essa democracia – que tem muito a invejar ao sistema eleitoral do Brasil e – isto mesmo – da Venezuela (a lisura do processo eleitoral venezuelano foi elogiada, inclusive, pelo Instituto Carter) – é um confuso processo indireto, sobre o qual incidem diversas legislações, pois cada Estado pode ter seu próprio sistema. O povo não elege seu presidente, mas delegados a um Colégio que pode escolher o Presidente contra a vontade da maioria do eleitorado expressa nas urnas. Trata-se de processo arcaico, no qual sobrevivem, contemporaneamente, voto em cédulas de papel e apuração manual, ao lado de um sistema de urnas e totalização eletrônicas. Lembram-se das apurações na primeira eleição de Bush? O sistema majoritário faz com que o candidato que tiver obtido o maior número de votos em um Estado carregue consigo todos os votos a que a unidade federativa tem direito no Colégio, qualquer que tenha sido a diferença (em outros termos: o eleitor pode votar no candidato A e ter seu voto contabilizado para o candidato B), assim, aquele candidato que tiver o maior número de votos em todo o país não é necessariamente o eleito, como ocorreu com Al Gore, em 2000.
O processo brasileiro
A crítica ao processo norte-americano é bom pano de fundo para uma discussão, sempre bem-vinda, sempre necessária, sobre nossa própria experiência, nesses poucos anos de democracia representativa pós ditadura militar. O qual vem avançando, positivamente, a cada eleição. Um dos méritos a destacar são os programas anuais gratuitos de rádio e de televisão, e, principalmente, os programas, igualmente gratuitos para os partidos (mas, como aqueles, pagos, pelo Erário, às emissoras) do período eleitoral.
Contrastando com a estadunidense, que enseja a hegemonia do poder econômico, nossa experiência é exitosa, barateando o custo das campanhas e assegurando um mínimo de acesso dos candidatos aos veículos eletrônicos, ainda que gozando de tempos abusivamente díspares (eis um ponto a ser aperfeiçoado). Mas a questão fundamental, é o financiamento público exclusivo das campanhas em todos os níveis, que se pode completar com outras medidas, como a unificação dos pleitos, e a exigência de renúncia ao mandato do parlamentar que aceitar cargo no Executivo.
Esta pode ser uma boa pauta para o Congresso pós-Cachoeira.
As prioridades deles
Ao escolher a periferia da China como cenário de sua primeira viagem internacional, o Obama reeleito dá eloquente indicador daquela que será a prioridade da Casa Branca até pelo menos 2017: a Ásia Oriental, para onde já deslocara navios de sua Marinha de guerra. Ao desafio auto-imposto de contrapor-se à influência da China (agora com um Partido Comunista renovado e esfingético), Obama terá de administrar a crescente crise do Oriente, onde os dirigentes de Israel, de quem os EUA são guarda-costas atômicos, hoje como ontem, parecem não ter limites em sua ação genocida. Essas notícias, porém, trazem boas novas para a América Latina e o Brasil. Preocupados com outros objetivos, maiores, os EUA não terão tempo de voltar-se para nosso Continente que, assim, poderá continuar em paz, em desenvolvimento e avançando em seu processo democrático.
Aproveitemos.
Roberto Amaral é cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e membro da direção nacional do PSB.