Estado, uma reforma que falta

Os ciclos históricos – analisados do ponto de vista econômico, político, científico ou o que seja -, são interdependentes, porque o ciclo em curso tem, necessariamente, origem no ciclo anterior, e se projeta no ciclo seguinte numa sucessão interminável de autodependências: o acontecer histórico é o resultado de fatos entrelaçados. A história, portanto, é um processo vivo, e seu estudo rejeita cortes epistemológicos, pois vivemos um sistema de ciclos encadeados.

Em 1985, após a ditadura militar, o país ingressa em um grande ciclo, que, em oposição ao anterior, chamaremos de democrático e que atravessou os governos de José Sarney (a longa transição), Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Desde 2002, entramos num período de preeminência do nacional-popular, iniciado pelos dois governos Lula, continuado por Dilma e, esperamos, não será interrompido por golpe dos suspeitos de sempre.

Este ciclo, quando sobre ele se voltam as análises reacionárias, é conhecido simplesmente como ‘lulopetismo’ com o que a direita tenta isolar desse período sua construção histórica, expressão que é do longo processo social que possibilitou, como resultado da emergência das massas, o governo de centro-esquerda. Há uma tendência a pensar o lulismo como fato isolado e autônomo, besteira de que fazem coro petistas simplórios. O grande mérito de Lula, e este é, de fato, o mérito dos grandes líderes, é o de haver sabido inserir-se no processo histórico, fazendo-se dele ao mesmo tempo contemporâneo e construtor, sujeito e produto.

Pode-se dizer, ainda, que o momento histórico escolhe seu personagem. A glória dos sovietes pedia um Lênin e sua degenerescência teria em um Yeltsin sua melhor tradução. O último ciclo militar brasileiro, aberto com Castello Branco, terminaria com o cavalariano Figueiredo abandonando o Planalto pelas portas dos fundos.

Em qualquer hipótese, a eleição de Lula foi um avanço histórico e uma conquista das grandes massas, cujos interesses, antes exilados, passaram a ser levados em conta na planilha da administração do Estado. A estrutura capitalista-burguesa do Estado não foi alterada, nem houve mudança de guarda, mas a classe dominante teve de acolher (regurgitamentos à parte), porque histórico, isto é, não-artificial, um governo de centro-esquerda (e não apenas petista) preocupado com a soberania nacional, o desenvolvimento autônomo e auto-sustentado, e a contemporânea distribuição de renda.

Nada é irreversível na vida de povos e nações, mas queremos crer que essas conquistas dificilmente serão derruídas, senão ao custo de graves comoções sociais.

Dentro deste ciclo, penso ver certas inflexões que dão ao governo Dilma um caráter particular. Sem perda das conquistas que herdou de seu antecessor, e por elas fortalecida – respeitadas e ressaltadas as profundas distinções biográficas das duas lideranças –, a presidenta avança sobre setores por décadas considerados tabu em nosso país.

Refiro-me, inicialmente, pela sua simbologia, ao setor bancário-financeiro, que a presidenta decidiu encarar e dobrar, valendo-se não só de sua autoridade moral mas principalmente da ação dos bancos estatais (sobreviventes da era dos Fernandos), que passaram a exercer um saudável papel de concorrência ante a banca privada, forçando-a a baixar taxas e juros até aqui escorchantes, ademais de imorais. Muitos bancos privados podem estar ingressando em crise, em face da queda do spread que produzia lucros injustificáveis e escondia a incompetência operacional. O BC enfrentou a escalada dos juros e a sobrevalorização do real que destruíam as condições de concorrência do produto nacional, mesmo no mercado doméstico. A farra dos planos de saúde está sob vigilância, tanto quanto o desrespeito das operadoras de celulares. Uma das mais importantes intervenções da presidente terá sido na política de concessões das distribuidoras de energia e a determinação da redução, via corte de impostos, dos preços da energia tanto doméstica quanto industrial, beneficiando milhões de famílias e facilitando a recuperação econômica. Terá criado graves antinomias.

Mas há um ponto intocado: a reforma do Estado.

Insisto no tema: a dívida, ainda em tempo de saldar, que assume o governo de centro-esquerda ao deixar de enfrentar a reforma do Estado, a regulação do sistema de comunicação de massas (recomendo ao eventual leitor a consulta aos artigos 220, § 5º e 221 da Constituição de nosso pais), e a reconstrução de um centro de reflexão sobre o projeto nacional, atualização do papel exercido pelo ISEB dos nos 50 até que a ditadura o fechasse.

Persistem em nosso país possessões inexpugnáveis, o monopólio dos meios de comunicação (um estado dentro do Estado), ou, pervadindo toda a sociedade, os interesses do grande capital e a miopia regionalista, que impedem, por exemplo, a reforma do nosso iníquo sistema tributário. A classe dominante fala muito e tão-só no ‘excesso de tributos’, que sonega com a competência de seus contadores-advogados-auditores, quando o cerne da questão é a infâmia de o rico e o paupérrimo pagarem o mesmo imposto sobre a comida que consomem, e o IRPF incidir quase que exclusivamente sobre os ganhos dos assalariados. Falar em imposto progressivo deixa de cabelos eriçados os rentistas da Avenida Paulista. Igual heresia, digna da pena do fogo eterno, é falar em ‘democratização dos meios de comunicação’, ou simplesmente, reclamar do Congresso Nacional a instituição do Conselho de Comunicação Social, determinada pelo art. 224 de nossa Constituição.

Esses comentários procuram explicação para o fato de nosso governo não haver conseguido pelo menos dar o pontapé inicial numa profunda reforma do Estado brasileiro, visando à sua democratização, que começa pela modernização associada à retomada de seu papel indutor-desenvolvimetista, destruído pelos longos anos da irresponsabilidade neoliberal. Não me refiro apenas à ‘privataria’, mas ao ataque promovido à essência do Estado, impedindo-o de cumprir com seu papel de indutor do desenvolvimento em país dele tão carente, e legando-nos como herança, realmente maldita, uma estrutura burocrática infuncional, até aqui intocada.

O fato objetivo é que herdamos e estamos deixando para os que virão um Estado anacrônico, reacionário. Montado para servir a uma minoria, ao círculo pequeno da classe dominante e seus agregados, não atende às necessidades da sociedade de massas em construção pelas reformas do governo de centro-esquerda.

O próximo ciclo, não importa o governante, será, por exigência do processo histórico, o da reforma do Estado.


Roberto Amaral é vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Artigo originalmente publicado no site de CartaCapital 

 


 

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