Certa vez assisti pela tevê uma reportagem sobre a visita de um grupo de crianças de uma comunidade carente (era assim que se dizia à época) a um shopping center do Rio de Janeiro. A ideia era mostrar a boa vontade dos voluntários ao levar os pequenos a conhecer de perto o lado bom da vida, mas o resultado final foi uma matéria-denúncia sobre o tratamento lá recebido: em pânico, os comerciantes correram para fechar as portas das lojas para evitar a circulação das gentes diferenciadas.
Lembro do desfecho daquela história toda vez que, no fim do ano, grupos armados de boa vontade pegam crianças das favelas pelos braços e as levam a conhecer os lugares mais bem frequentadores das grandes cidades. Algo como: “vamos catequisar as feras levando-as para conhecer a ópera”. Nada contra as boas ações, mas imaginar a cena seguinte é inevitável: câmeras desligadas, logo os frequentadores habituais, espanadores em mãos, saem a limpar os resíduos tóxicos da invasão. Tudo, por fim, para me lembrar de um amigo, apelidado não por acaso de “Feio”, que, na adolescência, teve a ousadia de esperar um outro amigo em frente à loja mais sofisticada da nossa cidade. Saiu de lá algemado por parecer um “elemento suspeito”. Era a materialização, na vida real, de um mundo que nos era apresentado por uma velha música do Zé Geraldo sobre o pedreiro que constrói prédios que jamais poderá frequentar. “Hoje depois dele pronto/Olho pra cima e fico tonto/Mas me chega um cidadão/E me diz desconfiado, tu tá aí admirado/Ou tá querendo roubar?”
Pela música, pela tevê ou pelos fatos da vida, aprendíamos cedo que existem lugares que, embora de portas abertas, só podem ser frequentados por determinados grupos – e um passeio por universidades, redações jornalísticas ou cinemas pode ser revelador sobre nosso conceito de “minorias”.
Mas o mundo é um pouco mais complexo do que gostariam os higienistas de primeira ordem. Os muitos mundos dentro da mesma cidade se tocam, se penetram, se intercalam. Assim, uma curva malfeita no Morumbi pode dar em Paraisópolis, assim como o passeio pela Barra da Tijuca é serpenteado pela Rocinha. O contraste pode ser escondido no cartão postal, mas grita ao redor dos umbigos mais bem agasalhados.
Em geral, a conexão entre esses mundos se dá por vielas distintas. O rico erra o caminho (ou peca) quando sobe o morro, mas o pobre, quando desce, leva na mochila a sua força de trabalho – a não ser quando alguém resolve fazer turismo beneficente nas mecas do consumo, como na reportagem da tevê. É a senha para frequentar casas com quartos de empregado, elevadores de serviço, revistas na portaria e sobretudo um código de conduta para facilitar a assimilação cultural. Para muitos, é uma chance de olhar a “evolução” de dentro: ao vencedor, as batatas – e a afetação.
A História da humanidade é a história da luta de classes, diz um certo manifesto. Uma luta de cicatrizes abertas, medos recíprocos, preconceitos mal digeridos e docilidades forjadas. Por isso o espectador se sente um pouco vingado ao ver como circula Driss, o personagem de Omar Sy, no belo Intocáveis, de Eric Toledano e Olivier Nakache. Baseado em fatos reais, contados no livro O Segundo Suspiro, de Philippe Pozzo di Borgo, o filme escancara o estranhamento mútuo de uma aristocracia resistente e um subúrbio violento na França de nossos dias. Desbocado, descuidado e insolente, Driss é uma touro fustigado numa sala de cristais – uma mansão de Paris onde os criados circulam na ponta dos pés, a respiração presa, num luto simulado pela tragédia de Philippe (François Cluzet), um milionário excêntrico pajeado 24horas por dia desde que se tornou tetraplégico num acidente.
Driss tem aos pés todas as correntes de uma vida marginalizada e um único trunfo: gaba-se por ser um sujeito pragmático. E sendo pragmático ele logo deixa a ordem da mansão em polvorosa. Onde ele cresceu, eufemismo é licença poética. Por isso não faz rodeios ao se candidatar despretensiosamente para a vaga de emprego que o levará a cuidar do homem rico, trocar as roupas, colocar meias, fazer massagens rotineiras, limpar seus dejetos. Nada no mundo pode mais aproximar duas pessoas, e portanto dois mundos, como a relação entre “doente” e acompanhante-enfermeiro. A distância de origens, classes e referências é esmagada no primeiro contato – ninguém está lá por vocação. É aí que está o nó: para quem esperava mais uma novela sobre lições de vida e superação, e portanto mais um episódio sobre a assimilação cultural de cima pra baixo, o que se vê é o avesso.
Em outras palavras: Driss parece não saber com quem está falando. Bom para ele, bom para o temido (para os demais) interlocutor. Ao proferir o estranhamento sem o cuidado adequado com as palavras, o sujeito do subúrbio vira uma mansão inteira de ponta-cabeça. E por ser o único dali a não tratar um tetraplégico como criança, e sim simplesmente como quem precisa de cuidados especiais, fura sem querer uma bolha de ar rarefeito que se desmancha no próprio absurdo.
Quando isso acontece, o que se tem não é a patroa, ou o patrão, rindo dos erros gramaticais ou do sotaque de quem deixou seu lugar de origem sem beber das mesmas fontes de referências ou dos mesmos vinhos de seu empregador. A sofisticação daquela rotina e seus excessos de zelos e cuidados com palavras, pelo contrário, é aos poucos desmascarada por alguém fora daquele mundo. Só Driss tem o desprendimento necessário para dizer, como uma criança sem medo da punição, que o rei está nu – e que aquela vida de não-me-toques é absurda.
É como acender um rastilho de pólvora. Numa das cenas mais hilárias, Driss é acometido por uma crise de riso ao acompanhar o patrão a uma ópera. Ele não vê graça alguma em apreciar um sujeito vestido como uma árvore cantando alto uma música numa linguagem desconhecida. A risada contagia o patrão, que de repente passa a se enxergar por esse olhar pragmático de quem não vê sentido em se pagar fortunas num quadro mal desenhado ou em festas bem comportadas planejadas por familiares que não veem a hora de o aniversariante morrer de vez. A solidariedade das ruas é outra, parece dizer Driss, e só os bem-aventurados podem circular sem medo por ela – não importa o quanto tentem te convencer a pagar para viver enclausurado em castelos de muros, grades, medos e hipocrisias.
*Matheus Pichonelli – Carta Capital