O Sarau da Cooperifa, movimento cultural que transformou um boteco em centro de cultura e que há mais de 10 anos realiza atividades culturais na periferia de São Paulo estimulando as quebradas a tomarem gosto pela leitura e à criação poética, realizou uma das maiores façanhas da sua história -ou quem sabe da história da literatura propriamente dita, ou não dita-, um sarau de poesia com roda de Funk na maior favela do país, a Rocinha, na cidade maravilhosa para alguns e nem tanto para outros.
O convite partiu da APAFUNK (Associação de Profissionais Amigos do Funk) e do MC Leonardo, cidadão que luta incansavelmente pela cultura deste ritmo, o Funk, marginalizado pela sociedade como foi o samba, como é o RAP, como se toda a culpa de nossas mazelas viessem dessas músicas. Coincidência maldita, ou não, todos esses ritmos estão ligados ao negro, ao pobre, aos que vivem das sobras da educação, da cultura, da saúde, da moradia digna, da segurança, do pão.
Disso é feito a poesia da Cooperifa, dessa sobra de literatura negada durante 500 anos, dessa sobra de teatros, museus, cinemas, que foram transformados em botecos e que nós arduamente transformamos em coletivos culturais que se espalharam pelo país sem a permissão de ninguém.
Pois assim sendo, o sarau da Cooperifa invadiu a favela da Rocinha no Rio de Janeiro com mais ou menos 40 poetas partindo de um ônibus fretado e mais os que vieram de carro diretamente do extremo sul da periferia paulistana, para se encontrar com os que já estavam aqui aguardando para realizar esse encontro histórico da poesia das ruas com o autêntico Funk carioca. Pra mim, música boa é aquela que a gente gosta.
A Cooperifa chegou recitando poemas e conforme relatos de muitos alguns moradores foram atingidos por diversas poesias perdidas (também pudera, a Via Ápia estava lotada, inclusive crianças). A Polícia estava lá e não pode fazer nada. Dizem por aí que o batalhão da língua portuguesa refinada deu um depoimento no qual conclui que essa poesia praticada nas ruas, nos becos e vielas, já não respeita mais ninguém, de tão insolente que é.
Desde sempre ouço dizer que o povo não gosta de literatura, de livros, de poesia, da palavra falada. É mentira!
Estava lá com mais um bando de privilegiados quando a poesia chegou na favela soprando lirismo onde não deveria ter. Sufocando o sofrimento com a boca que não se cala, enxugando lágrimas que não se ouvem.
O Povo pode não saber que gosta de literatura, mas gosta. Todos nós envolvidos nisso estávamos lá pra dizer isso. É o que a gente está fazendo há quase 11 anos no Bar do Zé batidão. Informando às pessoas que elas gostam de literatura. Só isso.
É mentira que a gente não gosta de teatro, de cinema, de dança.
É mentira que a gente não gosta de universidade, que a gente não gosta de segurança e que sempre ficamos do lado dos bandidos pobres e que eles ficam todos do lado dos bandidos ricos. É mentira que todo político é ladrão e que todo pobre é otário.
É mentira que quem não estuda vira ladrão. Já que o país é desigual justamente por conta dos ladrões que estudaram demais.
É mentira que a zona sul é melhor que a norte, que a leste é melhor que a oeste, ou vice-versa. Somos todos uma coisa só: irmãos de sofrimento.
É mentira que torcer para um time te faz melhor do que aquele que torce para o outro time. E que dentro do time que você torce ainda tem um que torce mais do que você. E que para isso precisamos nos odiar.
É mentira que um bairro é melhor que o outro, e que a rua que você mora é mais legal. Foi esse tipo de mentira que contaram para os Tutsis e Hutus em Ruanda.
É mentira quando dizem que não há preconceito racial, social, facial e linguístico.Também é mentira que quem estuda muito é idiota ou qualquer coisa que o valha para ser esculachado pelos corredores de escolas sombrias. Faculdade não é coisa de boy.
É mentira que as mulheres gosta de homens que não trabalham. Que gostam de apanhar.
É mentira que onde cabe um cabem dez. Que cadeia é que nem coração de mãe.
É mentira que nós somos os feios, sujos e malvados que um dia Ettore Scola filmou.
É mentira que os anjos são brancos e o demônio é negro.Que a paz é branca.
A verdade é que ninguém gosta de favela. Principalmente quem mora lá. Onde já se viu alguém ser feliz morando em casa de madeira, água e luz emprestada, esgoto… conversa fiada. Mentira do tamanho de uma mansão.
Não somos iguais. Quando mais cedo a gente descobrir, mas cedo a gente acordar pra diminuir essas diferenças.
É mentira que rico sofre e pobre que é feliz. Pobre ri pra não enlouquecer.
É mentira que apesar de tudo e de todos, a gente não gosta de poesia.
É mentira que é impossível a gente se amar apesar das diferenças.
É tudo mentira o que eles contam pra gente.
Só a poesia para desmentir a verdade.
Estava lá quando a poesia subiu o morro abraçada à comunidade que sorria e cantava nos intervalos de uma dor e outra.
Era poesia que eles ouviam quando vinham suados do trabalho.
Era poesia o que eles tinham na boca. Poesia.
Parece mentira, mas era poesia que invadia a favela.
Poesia no pé do morro. No coração das pessoas.
Isso é a mais pura verdade.
Acredite!
Fonte: Blog Sérgio Vaz
Fotos: Viviane de Paula