“Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”. Este trecho de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa serviu de epígrafe para o livro de Murilo Leal. E parece apontar para um procedimento de trabalho do historiador e das testemunhas por ele entrevistadas.
Sobreviventes das epopeias que vão de 1953 a 1964 das classes trabalhadoras brasileiras, das lutas que marcaram sua autoconstrução como classe. Mas o estudo, de fôlego, não se limita a um apanhado de relatos, o que já seria um bom começo. O esforço é o de mapear práticas, no espaço do trabalho e no espaço da moradia, que resistem às formas de produção e reprodução do capital e, nessas práticas, reconhecer aspirações, ensaios, e organização para a superação dessa espécie de morte que o capital chama de vida.
Murilo Leal focaliza as lutas de têxteis e metalúrgicos de São Paulo no período de 1953 a 1964. Mas as contextualiza no movimento geral do capital, na configuração das alianças e contradições das classes proprietárias para gerir o Estado, nas tradições que se sedimentam e renovam no cotidiano da construção das lutas e nas organizações para as lutas. Para isso, o autor se apoia numa larga pesquisa documental e uma igualmente extensa coleta de relatos. A greve dos 300 mil, a dos 400 mil e a dos 700 mil são reconstruídas com a vivacidade da experiência, a partir da voz dos seus participantes. Não apenas dos dirigentes dos sindicatos, mas dos trabalhadores e trabalhadoras dos piquetes, das comissões de fábrica, dos delegados de seção.
A organização do material é indício de uma intenção. A primeira parte, “Determinações”, consta de um capítulo, “Espaços de produção”, dedicado à descrição das relações de trabalho nas fábricas e da procedência dos trabalhadores e de outro, “Espaços de reprodução”, que focaliza o bairro, o transporte, as condições de moradia. A segunda parte, “Lutas, reivindicações, organizações”, aborda em seis capítulos os conflitos nas fábricas e nos bairros que enfrentam a exploração considerando três dimensões: a do trabalho, a das condições de moradia e transporte e a das possibilidades de consumo. Essas lutas parciais foram construindo a confiança, a capacidade, o programa mais abrangente e as formas organizativas para lutas mais articuladas, e desembocaram nas greves gerais.
A terceira parte, “Representações: cultura e política”, pensa a consciência das classes trabalhadoras a partir de práticas próprias de sociabilidade, em permanente tensão com as representações que as elites fazem delas. Os dois capítulos desta última parte trazem contribuições originais para refletir sobre as possibilidades da formação de uma consciência independente, mas no contexto de experiências políticas populistas.
Afinal, esse olhar minucioso sobre o passado está marcado por preocupações do presente. Os esforços das classes trabalhadoras para recuperar e manter o controle sobre suas organizações sindicais, evitando a cooptação; as candidaturas operárias avulsas para vereador ou deputado, decididas em assembleias de base, com pautas reivindicativas de classe são temas que nos interessam para pensar um passado ainda mais recente e os impasses do nosso presente.
O estudo da relação entre políticos populistas e os sindicatos em luta ilumina nosso presente com uma luz bastante cruel. Os relatos sobre o vice-governador de Jânio, general Porfírio da Paz, participando dos piquetes de greve dirigidos pelos trabalhadores, por exemplo, nos obrigam a refletir a propósito de uma ação direta que não arrefece frente a um calendário de negociações e que, por isso mesmo, consegue tirar vantagem das contradições das classes dirigentes. Vantagens essas não apenas para obter reivindicações imediatas, mas para aumentar a organização independente e a autoridade social dos trabalhadores em luta sobre o conjunto das classes exploradas.
Superação da alienação
O sentido geral das lutas, mesmo as parciais, aponta para a superação da alienação. Há conflitos que são paradigmáticos, como aqueles que colocam em disputa o tempo da exploração. Ou, como o caso da Greve da Chapinha, em 1961, na fábrica de Elevadores Atlas. Hoje, quando é comum ver trabalhadores de todas as categorias circularem dentro e fora do lugar de trabalho carregando um crachá, podemos dimensionar o grau de consciência crítica dos operários que se recusaram a usar esse dispositivo que favorecia o controle da circulação, o policiamento da sociabilidade no interno da planta e a vigilância sobre a organização da classe.
Muito próximos eram os relatos sobre os campos de concentração nazistas, que permitiam potencializar a alienação no trabalho. Foi muita a perspicácia dos trabalhadores da Atlas, que souberam reconhecer no dispositivo do crachá um elemento que aproveitava aquilo que a indústria de guerra alemã havia aplicado nos campos de concentração com caráter “experimental”.
A luta da classe trabalhadora é ao mesmo tempo luta pela sobrevivência e luta pela consciência, pela condição humana. A reinvenção da classe trabalhadora nos apresenta a potência com que trabalhadoras e trabalhadores brasileiros se autoconstruiram e afiaram suas ferramentas organizativas. Há nas entrelinhas apontamentos para os desafios do presente que tanto nos inquietam.
Fonte: Brasil de Fato