É revoltante perceber que, em pleno século 21, ainda persiste no Brasil relações de trabalho análogas ao trabalho escravo e em alguns aspectos ainda mais degradantes do que este. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em torno de 25 mil trabalhadores, recrutados nas camadas mais pobres e sofridas deste vasto país, sobretudo no campo, são submetidos diariamente a esta forma brutal de exploração e opressão da classe trabalhadora, que ganhou força com o advento do neoliberalismo e o avanço da terceirização e precarização.
Já faz um bom tempo que as forças democráticas e progressistas batalham para pôr um fim definitivo a este traço perverso do capitalismo brasileiro, herança do império e do colonialismo e motivo de vergonha nacional e internacional. A PEC do Trabalho Escravo (PEC 438), que prevê a expropriação das propriedades em que for constatado relações do gênero, tramita no Congresso Nacional desde 2001, portanto há mais de 10 anos. Sua aprovação definitiva esbarra na oposição desvairada da bancada ruralista, que age em nome do direito supostamente sagrado à propriedade privada e exibe argumentos falsos e cínicos para justificar a conduta reacionária.
Na quarta-feira, 8, os ruralistas deram mais uma prova de intransigência neste sentido ao forçar novo adiamento da votação da proposta na Câmara dos Deputados para frustração de centenas de trabalhadores e militantes dos movimentos sociais, além de ministros do governo Dilma (que apoia a PEC), ex-ministros, artistas e intelectuais, que foram a Brasília com o propósito de acompanhar os debates em torno do tema e pressionar os parlamentares a votar de acordo com os interesses do povo.
Alegam os ruralistas que a lei não define o que é trabalho escravo nem trabalho degradante e jornada exaustiva. Trata-se de um argumento cínico, uma vez que “o trabalho escravo já está tipificado no Código Penal”, conforme ressaltou a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário. A verdade é que os representantes do velho e renitente latifúndio não assimilaram sequer a noção de que o trabalhador no capitalismo é formalmente livre, embora despossuído e explorado, continuam considerando os trabalhadores como meros escravos e não aceitam mudanças.
Não convém esquecer que, por obra e graça das classes dominantes, o Brasil foi o último país do mundo a acabar com a escravidão. Iniciamos também com atraso a regulação do Direito do Trabalho. A nossa legislação trabalhista, que toma corpo com Getúlio Vargas em 1932 e é consolidada (através da CLT) em 1943 durante muito tempo só contemplou os operários urbanos. Vargas não quis contrariar os latifundiários e só na década de 1970 é que os direitos trabalhistas começam a valer no campo. Porém, numerosos são os casos em que a legislação não passa de letra morta. É o mesmo obstáculo que se antepõe à bandeira histórica da reforma agrária, objetivo que países mais civilizados alcançaram ainda no século 19.
De acordo com estatísticas do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) entre 1994 a março de 2012 foram resgatadas mais de 42 mil pessoas submetidas a trabalho escravo em nosso país, o que configura uma média de 2,3 mil por ano. Da lista suja dos escravocratas modernos, flagrados pelo MTE, constam 292 empresas, inclusive de médio e grande porte. Recentemente foi constatado trabalho escravo numa obra em construção do programa Minha Casa, Minha Vida, contratada pela Caixa Econômica Federal (CEF) e transferida a uma empresa terceirizada.
O escravo moderno – em geral analfabeto ou semianalfabeto, sem consciência sobre a lei e os seus próprios direitos – é aliciado para trabalhar em locais distantes da sua residência original. Trabalha sem carteira assinada, alojado em condições desumanas, sem instalações sanitárias adequadas, água potável e sem nenhum equipamento de segurança e proteção. Já entra devendo ao patrão e muitas vezes nem recebe remuneração, trabalhando apenas para pagar a dívida, cobrada em sistema de agiotagem. Não tem liberdade para sair da propriedade, vivendo como um prisioneiro, amedrontado e sob o risco de ser espancado.
A demora na apreciação e aprovação da proposta que põe fim ao trabalho escravo mostra como é difícil avançar em direção à modernização e democratização das relações sociais em nosso país, especialmente no campo, onde o latifúndio, retrógrado e afeito ao crime, não arreda pé. À força da direita é preciso sobrepor a força do povo e para mobilizá-la é indispensável intensificar a mobilização popular e as manifestações para desmascarar, isolar e neutralizar a bancada ruralista. Caso contrário, corremos o risco de amargar mais um século de latifúndio, exploração e escravismo.
Wagner Gomes é presidente nacional da CTB.