O professor, sindicalista, sociólogo, arabista e membro da direção nacional no Partido Comunista do Brasil, Lejeune Mirhan, visitou a Palestina ocupada entre os dias 21 e 25 de março deste ano, para participar, como representante da CTB, de dois encontros sindicais, ambos com repercussão internacional. Nesta entrevista, publicada originalmente no “Brasil de Fato”, Lejeune, que realiza estudos e pesquisas sobre os países árabes há 30 anos, analisa as perspectivas do sindicalismo na Palestina.
Em nome da CTB, Lejeune recebe placa de homenagem da GUPW
Leia abaixo a entrevista concedida a Baby Siqueira Abrão:
Como foram os encontros?
Lejeune Mirhan – No Congresso da Central Palestina de Trabalhadores estiveram presentes em torno de 200 delegados sindicais de diversas categorias, vindos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Já na Conferência Internacional, estiveram presentes representantes de centrais sindicais de Brasil, Estados Unidos, Grécia, Espanha, Itália, Galícia, Inglaterra, França, Portugal, Holanda, África do Sul e Austrália. Dessas 12 delegações faziam parte cerca de 20 pessoas.
O que foi discutido?
O tema central do congresso foi a organização da resistência dos trabalhadores palestinos contra a ocupação israelense, que em maio deste ano completará 64 anos. Outros itens disseram respeito ao desenvolvimento econômico da Palestina, que hoje compreende menos que 20% de seu território histórico. Isso também se deve ao confisco de terras praticado por Israel, para a construção ilegal de colônias judaicas. Na Cisjordânia, onde vivem quase 4,5 milhões de palestinos, cerca de 250 colônias abrigam em torno de 600 mil judeus ortodoxos.
A participação da mulher palestina nas lutas sindicais também foi discutida. Ainda que a Palestina seja o país árabe onde a mulher tem o maior grau de escolaridade e politização, apenas 20% dos delegados sindicais eram mulheres.
O boicote aos produtos israelenses também esteve na pauta. Os trabalhadores palestinos defendem o incremento da produção industrial, comercial e agrícola do país e para isso é estratégico não consumir o que é produzido em Israel. Ocorre que a Palestina não produz tudo que eles precisam. No pequeno supermercado que ficava em frente ao nosso hotel, em Ramala, boa parte das mercadorias eram israelenses.
Ao final do Congresso, foi aprovado um plano de luta e eleita a nova direção sindical. O secretário-geral, Haider Ibrahim, foi reeleito.
Como você analisa o movimento sindical na Palestina?
Fazer sindicalismo em qualquer país já é, por si só, uma tarefa difícil. Mesmo em países como o nosso Brasil, que se diz democrático, ainda existem muitas restrições à organização sindical dos trabalhadores, em especial dentro das empresas. Não é por acaso que sempre falávamos, desde a época da ditadura, “fazer porta de fábrica”, porque ninguém entra na fábrica.
Agora, imagine fazer sindicalismo em um país ocupado pelo quarto exército mais bem-equipado do mundo, que é o de Israel. É muito difícil. Por isso mesmo o índice de politização é muito elevado. Todos os delegados sindicais com quem mantive contato eram revolucionários. Não tem “sindicalista moderado” na Palestina. Não basta lutar contra a exploração, por melhores salários. O desemprego é elevadíssimo, por causa da ocupação sionista. Assim, o sindicalista luta fundamentalmente contra Israel e contra a ocupação.
Quais os maiores problemas enfrentados pelos trabalhadores? E pelos sindicatos? Eles se devem à ocupação ou a questões internas, da própria Palestina?
O maior problema é o desemprego. Atinge, em algumas cidades e vilas palestinas, até 40% da população economicamente ativa. Os palestinos, como povo de nação ocupada, não podem emitir sua própria moeda. Usam a moeda da força ocupante, que se chama shekel.
Mesmo assim há certo dinamismo econômico em Ramala. Há muito movimento nas ruas centrais, no centro comercial da cidade. Pude observar várias construções de prédios, casas. Não visitamos Gaza, mas sei que lá as dificuldades são muito maiores. Imagino quão desenvolvida seria a Palestina, não fosse a ocupação israelense. [Nota da correspondente: segundo estudo realizado pelas autoridades palestinas em 2011, Israel lucrou mais de U$ 7 bilhões com a ocupação em 2010. Esse valor, se ficasse na Palestina, poderia transformá-la num país sustentável, sem necessidade de suporte financeiro internacional].
Pude observar que também os empresários são politizados. Em lojas, restaurantes e no comércio em geral há bandeiras palestinas, pôsteres de Yasser Arafat, fotos de Mahmoud Abbas. O partido Fatah é muito forte na região, assim como a Frente Democrática de Libertação da Palestina (FDLP).
A indústria, por causa da ocupação, ainda é incipiente. A grande maioria de produtos que exigem um grau de sofisticação maior para a sua fabricação são importados.
Os sindicatos palestinos são independentes ou estão ligados a partidos e facções políticas?
Tal qual no Brasil, os partidos políticos que atuam na sociedade palestina, atuam também nos sindicatos. No congresso travei contatos com todas as facções revolucionárias que compõem a OLP, a Organização pela Libertação da Palestina. Nela, o Fatah é o maior e o mais importante. Tinha, seguramente, a maioria dos delegados do congresso.
Soube, pelos camaradas da GUPW que nos acompanhavam, que todas as correntes e facções estão representadas na direção da Central, em especial o Fatah, a FDLP, a Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP), a FIDE e o Partido Comunista Palestino, que agora se chama Partido do Povo Palestino (PPP). O Hamas, que não reconhece a GUPW, não enviou delegados ao evento e dificultou ao máximo a saída da delegação de Gaza que foi até a Cisjordânia.
Como é a atividade sindical dentro de um país sob ocupação? Eles sofrem muitas restrições? Você poderia dar alguns exemplos?
Como sabemos, Israel retirou-se das sete colônias que possuía em Gaza em 2005, quando Ariel Sharon era primeiro-ministro. No entanto, ocupa 250 áreas, que representam mais de 25% de todo o território palestino da Cisjordânia. [Nota da correspondente: além das áreas citadas, nas quais foram construídas colônias judaicas, Israel tem o controle efetivo de mais de 60% da Cisjordânia, em função dos acordos de Oslo. Esses acordos dividiram essa região da Palestina em três áreas, A, B e C. Os sionistas controlam toda a área C e são responsáveis pela segurança da área B] Nessas localidades, as estradas são israelenses e, para trafegar por elas, passamos por diversos checkpoints. São humilhantes, esses momentos. Os soldados fazem revistas nas pessoas. Um clima de verdadeiro terror.
No entanto, os maiores problemas com relação à organização sindical reside no espaço geográfico chamado Israel (como sabemos, não temos, nos mapas mundiais, o país chamado “Palestina”, mas somente “Israel”; um verdadeiro absurdo). Nas terras chamadas “Israel”, sobrevivem 1,5 milhão de palestinos. Segundo denúncias da Organização Internacional do Trabalho, a OIT, os trabalhadores palestinos ganham até metade do que ganham os trabalhadores israelenses, são mais perseguidos, sofrem restrições para se organizar em entidades sindicais e desenvolvem os trabalhos mais degradantes, que os judeus não fazem. Sem falar que sua jornada é muito maior do que a dos trabalhadores israelenses. É como se eles fossem cidadãos de segunda classe.
Como se dão as relações dos sindicatos com as empresas? E com a Autoridade Palestina?
Não pudemos aferir as relações com os patrões no dia-a-dia, na medida em que só tivemos contatos com os delegados sindicais. Em congressos sindicais as delegações internacionais acabam tendo uma programação paralela ao evento oficial. No entanto, pude ver o respeito que as lideranças sindicais têm para com a direção da resistência palestina, materializada na OLP. Nas mesas de abertura do congresso e da Conferência Internacional de Solidariedade que a FSM organizou, havia representantes do Comitê Executivo da OLP e diversas outras autoridades da ANP. Tive contato com a vice-ministra da Educação e com a ministra da Cultura.
O primeiro-ministro Salam Fayyad esteve na sessão de encerramento do congresso. Depois, as delegações internacionais reuniram-se com ele. Nessa reunião também estiveram presentes George Mavrikos, secretário-geral da FSM e Haider Ibrahim, da GUPW.
Você participou de outros eventos?
Sim. Destaco três deles, muito importantes. O primeiro foi a reunião com uma entidade, uma espécie de ONG, que luta pela libertação dos presos políticos e pela recuperação dos cadáveres dos mártires. Parece inacreditável, mas Israel mata os palestinos que lutam contra a ocupação e não devolve os seus corpos para as famílias.
Essa reunião, coordenada pelo secretário-geral da FSM, o grego George Mavrikos – que é deputado no Parlamento da Grécia pelo Partido Comunista Grego – ocorreu na noite de 23 de março e contou com os 20 delegados internacionais dos 12 países. Ficou acertado que, em 17 de abril, terça-feira, tentaríamos fazer o que fosse possível, em nossos países, para lembrar os mais de 12 mil presos palestinos e para exigir sua libertação.
Outro evento foi minha participação, junto com Mavrikos, de uma entrevista para três televisões que acompanhavam o Congresso e a visita do primeiro-ministro Fayyad. A meu lado também estava o camarada Mohamed, da GUPW e da executiva da FSM. O tema que abordei foi a realização do Fórum Social Mundial Palestina Livre em Porto Alegre. Foi ao ar numa TV Palestina e duas TVs árabes.
Os palestinos aprovaram amplamente o FSMPL. Esperam enviar uma grande delegação da Palestina e dos vários países onde vivem os quase sete milhões de refugiados.
Por fim, visitamos o túmulo do camarada Yasser Arafat, que faz parte do complexo da sede da OLP e da ANP, em Ramala. Muita emoção.
Você foi a Nabi Saleh, vila que sofre muita repressão, muita violência. Como analisa sua experiência lá?
Entre as várias programações que tivemos, paralelas ao Congresso, a mais importante foi em 23 de março, sexta-feira, quando visitamos Nabi Saleh. Os líderes da resistência popular na comunidade nos disseram que suas famílias vivem ali há cinco mil anos. É uma vila cananeia. Os pouco mais de 500 moradores são de uma só família, os Tamimi. Para entrar em Nabi Saleh tivemos de passar por um checkpoint com 40 soldados fortemente armados e uns seis jipes blindados, além do caminhão com jato d’água química. Estranhamos esse aparato. Logo descobriríamos que eles protegem uma colônia judaica ilegalmente construída nas terras de Nabi Saleh, com mansões onde vivem dois mil judeus ortodoxos.
Participamos de um comício na praça central e depois engrossamos uma manifestação pacífica que a população faz todas as semanas. Éramos em torno de 150 pessoas. Caminhamos quase uma hora pelas ruas da vila, até os seus limites, quando, de repente, sentimos na pele a brutalidade do exército de Israel. Primeiro, vieram os jatos d’água, e depois as bombas de gás tóxico. Muitos de nós passamos mal e uma ambulância do Crescente Vermelho atendeu os feridos . Consegui filmar tudo isso, um filme de 21 minutos – vou colocar no You Tube –, dos quais os sete minutos finais são um registro da brutalidade e da violência das forças israelenses de ocupação.
O gás lacrimogêneo que nos era atirado quando enfrentávamos a ditadura em nosso país, nos idos de 1970, parecem sabonete nos olhos, comparados aos gases usados por Israel. É impressionante. São muito fortes. Os jovens nos deram um produto que, quando inalado, minimiza os efeitos do gás. As bombas dispersaram a manifestação.
No entanto, o que presenciamos depois foi surpreendente para todos nós, dos 12 países. Quando recuamos para uma casa próxima do local onde fomos atacados, vimos uma batalha campal para o controle de uma pequena colina na entrada de Nabi Saleh. Num primeiro momento, com sua violência e truculência, os soldados ocuparam totalmente a colina, chegando inclusive a ficar perto de algumas casas. No entanto, cerca de 20 jovens, todos com seus rostos encobertos, para não serem reconhecidos – o mais velho talvez tivesse 16 anos! – passam a enfrentá-los. Com quê? Paus, pedras, estilingues e fundas! De um lado os covardes soldados, muito bem-armados, e de outro crianças, jovens, muitas meninas, enfrentando-os com as armas que possuíam.
Os palestinos venceram a batalha. Os soldados, impossibilitados de disparar, pois isso mataria todas as crianças – o que causaria repercussão internacional –, acabaram tendo que recuar. E a juventude palestina reocupou a colina, ganhando essa pequena mas simbólica batalha. Elas e eles não temiam o gás das bombas. Aliás, muitos pegavam as granadas ainda fumegantes e as atiravam de volta aos soldados.
Fiquei impressionado com a coragem dessas crianças. Parece que nasceram para lutar. Nenhum de nós, já mais maduros e alguns até idosos, tinha o mínimo preparo para uma batalha como essa. E eles fazem isso todas as semanas!
Isso nos marcou muito. A maioria registrou em fotos, muitos filmaram. Uma experiência inesquecível. Como disse na parte final da narração do meu pequeno filme, participar de uma passeata na Palestina ocupada já é uma experiência inesquecível, mas enfrentar o exército israelense… Ah, isso jamais esqueceremos.
Que lições você tirou das experiências dessa viagem?
Voltamos para nossos países convencidos de duas coisas: a causa palestina é hoje a principal causa de toda a humanidade e a ela devemos prestar toda a solidariedade que estiver ao nosso alcance; devemos incentivar o que chamo de turismo de solidariedade, ou seja, incentivar delegações de cidadãos de todo o mundo a visitar a Palestina ocupada. O que fazíamos e ainda fazemos com Cuba, devemos agora fazer com a Palestina. Vale a pena. A causa é mais do que justa.
Nesse sentido, o Comitê pelo Estado da Palestina, que reúne 63 entidades, das quais 28 nacionais de todos os segmentos, está organizando a 1ª Missão de Solidariedade ao Povo Palestino, indicada para o período de 11 a 17 junho, quando realizaremos nossa primeira experiência nesse sentido. Faremos ampla divulgação.
Por fim, estou convencido de que os palestinos mais precisam, neste momento histórico, é do direito a ter seu Estado soberano e independente, organizado por eles, com as fronteiras que eles determinarem e for possível negociar na atual correlação de forças. Que eles tenham direito a seu exército, a fronteiras seguras, à sua capital em Jerusalém, à emissão de sua moeda, enfim, que sejam admitidos na ONU como seu 194º. Estado-membro. Esse é o maior desejo desse povo sofrido, ao qual daremos todo apoio aqui no Brasil.