Existem diversos tipos de artistas: os famosos descompromissados; os talentosos desconhecidos; os produtos da moda, que desaparecem tão rápido quanto surgem; os lutadores incansáveis…o cubano Silvio Rodriguez pertence a esta seleta estirpe, tendo se transformado, para além de sua condição de artista, num registro vivo de nosso tempo.
Silvio Rodriguez nasceu em 1946 na cidade de San Antonio de los Baños, no interior da província de La Habana, em Cuba. Provindo de uma família de escassos recursos, passou a infância em idas e vindas entre sua cidade natal e a capital de seu país. Aos doze anos, aquela idade onde começamos a fundamentar nosso olhar sobre o mundo, triunfa a Revolução Cubana. Antes de ser o narrador musical dessa epopéia chamada Revolução, Silvio ajudou a construí-la de distintas formas: com treze anos fez parte das brigadas juvenis de alfabetização percorrendo os interiores de seu país. Tempos depois, serviu o exército. Foi nessa época que começaram a surgir suas primeiras composições, nascidas nos acampamentos e selvas de Cuba. Como afirma em uma de suas delas, ao retratar essa época: “o violão é o melhor fuzil do jovem soldado”.
Liberado do exército, passa a conduzir um programa de televisão e a fazer recitais pelo seu país. Era o ano de 1969. O mundo se agitava entre protestos e ditaduras. A guerra fria se acentuava com conflitos em várias partes do mundo. Cuba resiste. Silvio ajudava a construir com compositores como Pablo Milanés, Noel Nicola e Vicente Feliú o movimento musical denominado Nova Trova Cubana, caracterizado pela crítica social, pelo compromisso com a revolução, pela densidade poética e pela ousadia em termos musicais. A Nova Trova Cubana fez parte, juntamente a movimentos musicais de outros países, da Nova Canção Latinoamericana, movimento composto por artistas revolucionários e que marcou toda uma geração de lutadoras e lutadores do continente.
Desde o início de sua carreira até os dias de hoje, Silvio se consolidou como um artista da Revolução. Na década de 1970, trocou o violão pelo fuzil e por duas vezes foi a Angola, juntamente com milhares de cubanos que foram lutar pela independência daquele país. Nos anos 1990, em meio a uma das piores crises econômicas de Cuba, compôs a canção “El Necio”, aquela que afirma “eu morro como vivi”. A canção virou um hino e alentou o povo cubano a seguir sua luta. Cabe lembrar, no entanto que Silvio por diversas vezes criticou a situação social de Cuba. Com a grandeza daqueles que contribuíram para a edificação da Revolução, Silvio sabe que a consolidação desse processo depende da superação dos problemas que se apresentam. Sua crítica não é vazia nem irresponsável. Sua história e seu compromisso com a Revolução o respaldam. Uma das maiores expressões de sua importância é o fato de suas canções serem executadas nos principais pontos turísticos e históricos de Cuba. É um fato: suas canções viraram a trilha sonora da Revolução.
Excelente poeta e músico inventivo, conquistou milhares de seguidores nos países em que se apresentou. Sempre acompanhado de seu violão, Silvio testemunha em seus versos as contradições humanas, o compromisso ético, o engajamento político, a dura tarefa de construir uma nova sociedade e, claro, o amor, mas não de uma maneira convencional. Em 1975 gravou seu primeiro trabalho solo. Hoje são dezoito no total, sem contar as parcerias e as gravações ao vivo. Narrando, descrevendo, criticando e propondo, as canções de Silvio Rodriguez traduzem como poucas os últimos cinqüenta anos da conturbada história humana, servindo-se de uma sabedoria poética de quem já viu e já passou por muita coisa.
No último mês de novembro, o trovador (como gosta de ser chamado), fez três apresentações na Argentina e uma no Uruguai. Um recital de Silvio é uma daquelas coisas consideradas imperdíveis. Como não moramos em Cuba, vê-lo atuando é uma raridade. Juntei as últimas moedas, adiei os compromissos da agenda e parti para o Uruguai pra ver ao vivo o que essa lenda da canção latinoamericana tinha a dizer e a cantar, afinal, quem sabe qual será a próxima oportunidade?
Montevidéu – quarta- feira – 16 de novembro de 2011
Pela primeira vez na vida pisei no Uruguai, país que conhecia pelos seus movimentos sociais, pelo relato de companheiros e pela musicalidade negra. Surpreendeu-me a beleza de Montevidéu. Chego à porta do estádio e entro sem ser revistado. Já diz muito sobre o país. O estádio pequeno transmitia uma sensação de proximidade e cumplicidade do público consigo mesmo e com o artista. Surpreendentemente heterogêneo, os fãs de Silvio variavam de sessentistas experts nos dissabores do continente a jovens e adolescentes embalados pela poesia do trovador. A obra de Silvio tornou-se atemporal e universal.
O trovador subiu ao palco acompanhado de dois violões, baixo, percussão, bateria e sopros, executados pela sua companheira e excelente musicista Niurka Gonzalez. Ousado, refez os arranjos de várias de suas canções mais conhecidas, mas sem descaracterizá-las. Silvio é daqueles que não exagera nos arranjos. Sabe a medida exata das notas e onde colocá-las na melodia. Apresenta seu virtuosismo e de seus músicos, mas não apóia seu recital nessa qualidade. Não precisa. O quê sobressai são as melodias rebuscadas casando com as letras inspiradas, férteis, cheias de imagens e proposições. A voz gasta pelo tempo cria ainda mais cumplicidade com um publico que absorve cada canção como se fosse uma experiência pessoal própria. Lágrimas, sorrisos, cantos…eis a força da arte.
Em uma das canções, o autor interrompe os músicos e sentencia: “esta canção está dedicada aos mais pobres e aos que sentaram mais longe, porque esses ingressos são os mais baratos”. A canção é “El Mayor”, dedicada a Ignácio Agramonte, um dos principais heróis das guerras de independência de Cuba no século XIX. É, segundo Silvio, uma das canções favoritas de Fidel Castro. No meio do espetáculo, Silvio recebeu o titulo de Cidadão Ilustre de Montevidéu, em homenagem ao seu labor pela cultura latinoamericana.
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Fim do recital. Público emocionado e satisfeito. Fria madrugada em Montevidéu. Na porta do estádio, dezenas de ônibus dispostos pela prefeitura esperam para levar o público ao centro da cidade. Outro fato que dizia muito sobre o país (e algo sobre o nosso). Fui dormir. No outro dia atravessaria o Rio do Prata para ver outro recital de Silvio. Dessa vez em Buenos Aires.
Buenos Aires – Sexta – 18 de novembro de 2011
O estádio do Ferro Carril Oeste foi o palco do retorno de Silvio a Buenos Aires depois de seis anos. Localizado em uma área residencial perto do centro da cidade, o simpático estádio foi o local ideal para abrigar a multidão ansiosa, que no transcorrer do recital se tornou ensandecida.
Em Buenos Aires, Silvio mais uma vez ofereceu suas belas canções. Entoadas uma a uma, cantou os clássicos de sempre, belas canções menos conhecidas e algumas de seu mais recente trabalho: o CD Segunda Cita. A percussão caribenha deu um tom inusitadamente dançante ao recital na canção “Cuentan”, composta há décadas e que estará presente no seu próximo trabalho. “Dias y Flores” foi emotiva. As mundialmente conhecidas “La Maza” e “Ojalá” foram catárticas. Silvio ainda cantou juntamente ao argentino Victor Heredia o hino “Todavia Cantamos”, em homenagem as Madres de Plaza de Mayo. O recital se tornou interminável. O público ocupou o setor mais próximo do palco e não deixava o cantor ir embora. Acenderam-se as luzes do estádio e nada do recital acabar. Coros, cantos, ovações…entre um “Viva Cuba” e o nome de alguma canção, Silvio voltou seis vezes ao palco. Um recital memorável.
Do alto de seus 65 anos, Silvio Rodriguez está em plena luz, como afirma em uma de suas canções. Fez recitais para o público, cantando as canções que este queria ouvir. Há um momento em que o artista não precisa provar mais nada a ninguém. Nem aos fãs e nem aos inimigos. Já fez o que tinha que ser feito. Já brigou o que tinha que ter brigado. Nem por isso se acomoda na confortável cadeira do reconhecimento. Contribui. Canta. Compartilha suas notas e pensamentos. Aponta caminhos para um mundo melhor. Silvio é daqueles que entende que uma Revolução é construída por seres humanos passíveis de acertos e erros e é composta de avanços e retrocessos. Ele mesmo é filho de uma revolução que se transmuta sem perder sua essência. A serenidade de Silvio expressa a tranqüilidade de quem já passou por muitas tormentas e não se assusta com qualquer ventania.
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Publicado originalmente em Brasil de Fato, por Tiarajú Pablo