Eleições na Nicarágua reacendem debate sobre a legalização do aborto

O drama de uma menina indígena de 12 anos, que engravidou por consequência de um estupro, relançou a polêmica sobre o aborto a alguns dias das eleições presidenciais e legislativas que aconteceram no domingo (6) na Nicarágua. “É um milagre, é um sinal de Deus, vamos agradecer a Deus por tanta fé e amor!”, exclamou Rosario Murillo, esposa do presidente Daniel Ortega e porta-voz do governo sandinista (esquerda), pouco depois que a menina deu à luz, por cesariana, um bebê de 2,5 quilos.

Ortega, reeleito no primeiro turno, é contra qualquer forma de aborto, inclusive em casos de risco à saúde da mãe ou quando a gravidez é resultado de um estupro. O aborto terapêutico, legal na Nicarágua desde 1837, foi proibido e criminalizado em 2006 graças à votação de parlamentares sandinistas, pouco antes da eleição presidencial anterior, vencida por Ortega.

Originária da comunidade dos índios Miskito de Walpa Siksa, na costa caribenha, a menina, que sofreu de eclampsia e convulsões após 35 semanas de gestação, foi levada para o hospital Bertha-Calderon de Manágua. Segundo o jornal “El Nuevo Diario”, seus pais pediram por uma interrupção de sua gravidez.

Rosario Murillo se apoderou do caso, acusando os jornais de oposição de “comércio midiático sem escrúpulos, transformando esse drama em espetáculo e em circo”. “Esse governo está comprometido com a defesa da vida”, ela repetiu, convocando a população a rezar pela saúde da menina e de seu bebê.

“O governo manipulou esse caso com fins vergonhosamente eleitorais, para atrair a simpatia da hierarquia católica”, denuncia Juanita Jiménez, diretora do Movimento Autônomo das Mulheres (MAM). “Para nós, a continuação dessa gravidez é totalmente absurda e cruel”, diz. Segundo as organizações feministas nicaraguenses, quase uma centena de mulheres e de menores de idade morrem a cada ano devido à proibição do aborto terapêutico.

“As últimas estatísticas oficiais que datam de 2007 atestam 113 mortes maternas, sendo que 80 delas poderiam ter sido evitadas por um aborto terapêutico”, ressalta. “Desde 2007, o Ministério da Saúde não publica mais números, isso se tornou um segredo de Estado.”

América Latina

Além da Nicarágua, somente três outros países da América Latina proíbem qualquer forma de aborto: o Chile, a República Dominicana e El Salvador. Segundo um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) feito em 2008, é na América Latina que se encontra o mais elevado índice de aborto de risco, 31 para cada 1000 mulheres com idade entre 15 e 44 anos.

O número de casos de violência sexual contra mulheres vem aumentando continuamente na Nicarágua. Segundo o porta-voz da polícia, o comissário Fernando Borge, 1.937 casos foram registrados entre janeiro e agosto. “86% dos abusos sexuais são contra menores de 16 anos, e em 7% dos casos, elas correm o risco de engravidar”, explica a diretora do MAM.

Fabio Gadea, o candidato liberal à presidência, em segundo lugar nas pesquisas, também é contra qualquer forma de aborto. Seu candidato à vice-presidência, o sandinista dissidente Edmundo Jarquín, é o único a se dizer a favor do restabelecimento do aborto terapêutico. Nos canais de televisão controlados pelo governo, suas declarações são reproduzidas sem parar, com a palavra “terapêutico” apagada.

“A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) se tornou uma força ultraconservadora que manipula as consciências e utiliza a religiosidade popular de maneira perversa”, afirma Juanita Jiménez, que foi membro do movimento estudantil sandinista em sua cidade natal de Masaya, no início da revolução de 1979.

Uma pesquisa publicada pelo MAM indica, no entanto, que 78% das pessoas entrevistadas são a favor do restabelecimento do aborto terapêutico. “Uma nítida maioria, 64%, diz que a decisão de interromper a gravidez pertence à mulher e a sua família”, observa a diretora do MAM.

Daniel Ortega passou a ser odiado pelos movimentos feministas latino-americanos após as acusações de estupro feitas contra ele por Zoilamerica Narvaez, filha de Rosario Murillo, no fim dos anos 1990. Um juiz sandinista havia arquivado o caso em 2001, depois do pacto de impunidade entre Ortega e o ex-presidente Arnoldo Alemán, absolvido pela Justiça depois de ter sido condenado a 20 anos de prisão pelo desvio de mais de US$ 100 milhões em verba pública.

Fonte: Le Monde

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