Da crise de agosto à cadeia da legalidade

Como estabelecer uma delimitação cronológica, fixar fronteiras históricas, precisar no tempo epopeias e sagas, por fim identificar a comunhão dos episódios, levantar a malha das intercomunicações, posto que nenhum fato histórico é autônomo, embora sempre único?

Os fatos históricos, os eventos registrados pela crônica, são tributários de rio de grande curso, do qual não se conhecem começo nem fim, pois a origem é remota e vai indicar arroios perdidos, e a foz é seu encontro com outro curso d’água, numa interdependência de vasos comunicantes que faz com que cada elo da cadeia interminávelseja ao mesmo tempo resultado e causa de outras ações.

Não só na natureza, como ensinou Lavoisier; também na História nada se perde, tudo se transforma, porque o que pareceria ao analista desatento o fim de uma saga, é apenas o começo de outra.

A bem da verdade, os fatos, como os afluentes dos grandes rios, vão se formando enquanto correm, cada um construindo sua trajetória, mas sem controle sobre ela, dependentes de uma série incontrolável de condicionantes; os contribuintes logo desaparecem absorvidos pelo grande leito que a todos e a tudo absorve, um novo todo, a crônica histórica, que, ousada e frustradamente, tenta juntar os ingredientes numa única soma, uma só instância, um só título, um só conjunto só aparentemente uniforme.

Essa pequena reflexão é sugerida pela análise à crise de agosto de 1961 que é também a crônica do golpismo militar continuado, da fragilidade da política, da tímida ascensão do poder civil, da lenta e sofrida construção da democracia, e do exílio do povo.

Em todas essas crises, o povo foi o grande ausente, desde a Proclamação da República, um projeto militar, discutido entre militares, executado por militares. Das intentonas, de 1922 a 1955, ao povo só foi concedido o papel de espectador silencioso, e muitas vezes atônito. Nos desdobramentos do segundo agosto, o de 1961, liderado por um político que se levantara contra o diktat dos ministros militares, o povo foi às ruas, e aí mudou o curso da História, assegurando a posse de Jango. Mas, uma vez mais, e como sempre, a palavra final seria pronunciada pelas elites em mais um episódio de conciliação, para a qual, de novo como sempre, sua opinião não seria cogitada. Jango toma posse, é verdade, mas sob as regras deum parlamentarismo de ocasião implantado a toque de caixa, cujo objetivo declarado –e finalmente também inalcançado– era a mutilação dos poderes presidencialistas do chefe da Nação, concertado entre os militares e as lideranças de todos os partidos políticos representados no Congresso Nacional e o aplauso entusiasmado da grande imprensa.

Por onde começar? O resumo dos acontecimentos, este é simples.

Agosto de 1954 assinala a deposição e suicídio do Presidente Vargas e a consequente posse de seu vice, João Café Filho, já composto com asfacções políticas e militares que haviam liderado o golpe, o qual, executado na crista de grave crise militar, levada das ruas para os quarteis, a ela não se reduzia. Tratava-se de, retornando a 1945, ajustar as contas com um Vargas que, ditador de direita e Presidente constitucional, ousava um governo de profundas raízes nacionalistas e trabalhistas. Por isso mesmo, consoante os interesses das forças que o sustentavam, o governo Café Filho seria clara e ideologicamente antivarguista. Com ele governará a UDN derrotada em 1950, e ela comparecerá com seus mais proeminentes ideólogos e próceres, como Carlos Lacerda, Prado Kelly, Afonso Arinos, Bilac Pinto e seu correspondente dispositivo militar: Eduardo Gomes, presente em todas as sublevações militares a partir de 1922, será seuMinistro da Aeronáutica;o almirante Amorim do Vale, seu Ministro da Marinhae Juarez Távora o poderoso Chefe da Casa Militar. Na Escola Superior de Guerra, centro de formulação do pensamento da direita militar, cujo primeiro comandante (1949-1952) fôra Cordeiro de Farias, oriundo do ‘tenentismo’, como os já citados, e mais Canrobert Pereira da Costa, brilha o cel. Golbery do Couto e Silva, que será um dos principais articuladores do golpe de 1964. O Ministro da Guerra–único erro dos estrategistas, saberão eles muito tardiamente–será escolhido por Távora e sua preferência recairia pelo então desconhecido general Henrique DufflesBatista Teixeira Lott, sem atuação política conhecida, respeitado pelas diversas correntes que dividiam o Exército, e identificado como disciplinador.
No ano seguinte ao golpe de agosto de 1954, travam-se eleições presidenciais e nelas, como é sabido, são consagrados Juscelino Kubitschek e João Goulart; o primeiro, ex-governador de Minas Gerais, o segundo,ex-Ministro do Trabalho(1953) de Vargas contestado pelos militares (que terminam forçando sua demissão), e ambos agora candidatos da aliança PSD-PTB e das forças de esquerda, inclusive os comunistas, cujo partido estava na ilegalidade desde 1947. Derrotado havia sido o general Juarez Távora, o candidato da UDN e do anti-varguismo civil e militar. Os golpistas de 1954, com o apoio do novo inquilino do Palácio do Catete, tramam, em 1955, impedir a posse de JK-Jango (jogo que se repetiria em 1961 contra Jango, repetindo 1950 contra Vargas) e são atropelados por um contragolpe militar, o chamado ‘11 de Novembro,’ liderado pelo próprio Ministro da Guerra, o general Lott, que contou com a solidariedade ativado comandante do I Exército, responsável pela segurança da Capital Federal. Este comandante é o general Odilio Denys, que estará atuante até 1964, depois de em 1961 haver liderado a tentativa de golpe que se contará mais adiante.

Em suas memórias, o Marechal informa que, já em 1960, Ministro da Guerra de Juscelino (Lott se afastara para disputar a Presidência) começara a articular, no Exército, a aliança entre as facções de direita e de centro e que imediatamente à posse de Jango, que não conseguira frustrar,iniciara os preparativos visando à sua deposição “pelas armas”.

Vencido o golpe que intentava impedir sua posse e a de seu vice, Juscelino consegue levar a termo seu mandato e passar a faixa presidencial ao seu sucessor, o ex-governador de São Paulo, Jânio Quadros, candidato da oposição e da direita, que derrotara Lott, candidato do governo.

Jânio Quadros renuncia em 25 de agosto de 1961, com apenas sete messes de governo, e seusministros militares, Silvio Heck ministro da Marinha, Grum Moss da Aeronáutica e Odilio Denys da Guerra) anunciam a ‘inconveniência’ da posse de Jango, vice-presidente constitucional, desencadeando a crise do segundo agosto trágico,a qual, apesar da emenda parlamentarista e da consequente posse mutilada de Jango, não havia aplacado o golpismo recorrente.Assim, Jango, em novo curso do agosto de 1961, é deposto em 1º de abril de 1964, quando se instaura aquela ditadura militar que só conheceria termo em 1985,quando o general Figueiredo, o último general-presidente, deixou o Palácio do Planalto.Pela porta dos fundos, para evitar o constrangimento de transferir a faixa presidencial para o agora seu desafeto, ex-senador José Sarney, ex-presidente da ARENA, o partido da ditadura, eleito vice-presidente da República como companheiro de chapa de Tancredo Neves, o presidente eleito pela oposição,mas condenadopela maquinação dos deuses a não tomar posse.

Aliás, merece referência especial o papel quase shakespearianoque os fados reservaram, em nossa História, aos vice-presidentes da República, seguidamente chamados a intervir como protagonistas em peças para as quais haviam sido convocados como coadjuvantes: Floriano Peixoto, Nilo Peçanha,Delfim Moreira, Café Filho, Carlos Luz, João Goulart, José Sarney, Itamar Franco…

É consenso entre os comentaristas da vida republicana afirmar que a intentona de 1964 foi a resolução exitosada frustrada tentativa de impedir a posse de Jango em 1961, tentativa a qual, por seu turno, já teria sido uma resposta ao contragolpe do ‘11 de Novembro’ de 1955, o qual, por seu turno, deveria ser considerado como uma resposta ao agosto de 1954. Neste golpe, como desde 1937, como em 1945, e finalmente em 1964, os atores, com alguma renovação de quadros, serão sempre as mesmas facções militares.

Mas essas peças de teatro de mau gosto, embora encenadas por militares aos quais eram destinados os principais papéis, envolviam interesses que iam para além da caserna e não se encerravam em um anticomunismo ora patético, ora de indústria, porque justificador de todas as indisciplinas e fraturas da ordem democrático-constitucional.

Ver-se-á, na continuidade, que os golpes e contragolpes de 1954, 1955, 1961 e 1964 (os quais, no limite, deitam raízes no ‘tenentismo’ e nos golpes de 1937 e 1945) foram levantes que contrapuseram forças políticas que dividiam o país;de um lado as correntes nacional-desenvolvimentistas, de inspiração varguista e nacionalista, e de outro, aquelas forças servidoras da Guerra Fria e alinhadas à hegemonia norte-americana, que pregavam o desenvolvimento subordinado e a dependência como fatalidade.No plano econômico, eram as teses de Eugênio Gudin, Octávio Gouvêa de Bulhões, Roberto Campos e Glycon de Paiva, contrapostas por Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Ignácio Rangel, Rômulo de Almeida e Jesus Soares Pereira e o grupo dos ‘desenvolvimentistas’ reunidos em torno do Instituto Superior de Estudos Brasileiros-ISEB, cujas portas foram cerradas pela ditadura em 1964. De um lado, os defensores do alinhamento automático do Brasil aos interesses dos EUA, aí compreendida a defesa do colonialismo, de que são ideólogos João Neves da Fontoura, Raul Fernandes e simplesmente seu executor, na última ditadura, o general Juracy Magalhães, a quem é atribuída a frase símbolo de vassalagem, pronunciada por ele como Ministro das Relações Exteriores do Brasil: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. De outro lado, os construtores de uma política externa independente. De um lado, os defensores do capital nacional, da Petrobrás e do papel indutor do Estado; de outro,o pleito do capital estrangeiro, da iniciativa privada e do ‘Estado mínimo.’ Os militares golpistas tinham Eduardo Gomes e Juarez Távora como suas principais lideranças, e os legalistas, em um primeiro momento, Estilac Leal (que chegou à presidência do Clube Militar) e, a partir do ‘11 de Novembro’, o general Lott. Entre uns e outros os oportunistas, cujo legalismo ou golpismo variava de acordo com o sentido dos ventos.

Comandado pelo Ministro da Guerra, Henrique Batista Dufles Teixeira Lott, esse golpe-contragolpe, também chamado de ‘retorno aos marcos da legalidade’, desbaratou, apenas por algum tempo, saber-se-ia, a hegemonia daquelas forças políticas (udenismo) e militares que haviam reascendido ao proscênio com a segunda queda de Vargas. O poder civil era um Congresso sem forças, e o poder real formado pelo triângulo Catete-Escola Superior de Guerra-Clube Militar. Embora o Catete estivesse ocupadopor um civil, Café Filho, a força que contava era a do Chefe da Casa Militar, o marechal Juarez Távora, como Cordeiro de Farias e Eduardo Gomes, oriundo do ‘tenentismo’.

Ao impedir o golpe e assim garantir a posse dos eleitos de 1955, o contragolpe ‘legalista’, de fato, além de impedira sobrevida das forças do golpe de 24 de agosto 1954 (as quais, relembremos, repetiam contra o Vargas presidente constitucional ungido pelas urnas, o golpe assestado em 1945 contra o Vargas ditador), haviade certa forma assegurado o retorno das correntes mais próximas do trabalhismo, ou com elas identificadas.

Mas, o golpismo é recorrente.

As forças que interromperam a ditadura do ‘Estado Novo’eram as mesmas que o haviamimposto em 1937, também por intermédio de um outro golpe de Estado, planejado pelos generais Góes e Eurico Dutra contra a Constituição de 1934.Dutra ganharia o Ministério da Guerra, e seria o primeiro presidente após a reconstitucionalização de 1946.

Recapitulemos, uma vez mais.

Em 1930, Vargas havia alçado à Presidência da República à frente da mal denominada ‘revolução’ daquele ano, movimento civil-militar de modestas pretensões políticas. Nada obstante sua liderança, e a presença influente de políticos como Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura e mais alguns poucos, os fatos daquele ano eram uma projeção do ‘tenentismo’ de 1922 –data que, muito além da Semana de Arte Moderna, assinala o levante do Forte de CopacabanaEpitácio Pessoa–, e já alimentados pelas sequelas políticas da disputa entre Artur Bernardes e Nilo Peçanha.Presidente discricionário, Vargas instaura o Governo Provisório (1930/1934) e governa por intermédio de decretos até sua eleiçãocomo Presidente pela Constituinte de 1934, que também nos dariauma Constituição de logo criticada pelas vozes do autoritarismo como um surto weimariano sem apoio em nossa realidade. Essa Constituição, sem jamais lograr plena vigência, é derrogada pelo golpe de 1937 e substituída pela Carta outorgada pelo Ditador, esta agora denominada de ‘polaca’, por remontar à ditadura do marechal polonês JoséfPilsudski.

Seja pela sua perdurante e rica presença na vida pública nacional, ministro, deputado e governador, Presidente da República por 19 anos, ditador entre 1937 e 1945, seja pelas contradições que o fazem a um tempo amado e odiado pela esquerda (que o combateu e por ele foi ferozmente combatida na ditadura, para pranteá-lo na morte) e pela direita, Getúlio Vargas, fundador do trabalhismo, foi durante muitos anos um divisor de águas, uma lembrança que ainda hoje se tenta esmaecer — como tentaram o neoliberalismo àla FHC anunciando ‘o fim da era Vargas’, e o petismo, condenando o trabalhismo como um peleguismo. Em 1955, era ainda a lembrança do varguismo, agora sem Vargas, que assustava os coronéis e os generais herdeiros de 1922, açulados por um udenismo que via nas casernas indisciplinadas a alternativa para seu fastio eleitoral. Eis por que, concluída a vintena de mando militar inaugurada com o golpe de 1964, é razoável afirmar que as eleições de 1989 – e desde então a normalidade constitucional – fecharam, com as resistências ainda perdurantes nos setores militares mais atrasados, arcaicamente ainda apegados a uma Guerra Fria finda e a um anticomunismo anacrônico, o ciclo dos pronunciamentos militares — o primeiro dos quais, na História recente, aliás, fundara (em 1889)a própria República proclamada pelo Marechal Deodoro da Fonseca, a seguir seu primeiro Presidente, eleito pelo voto indireto. Deve a República ao seu primeiro Presidente o primeiro golpedeEstado.Devorado pela primeira crise do novo regime, é substituído pelo seu vice, o marechal Floriano Peixoto.

Todas essas questões estavam à flor da pele em 1955 com as eleições de Juscelino e Jango, porque o ciclo não se havia fechado nem com a deposição do ditador estadonovista (1945), nem com o suicídio do presidente democrata e constitucional (24 de agosto de 1954). Ao contrário, as eleições representavam o retorno ao poder daquelas forças renegadas, um trabalhismo apodado de corrupto e potencialmente ainda mais nocivo que o original, pois, agora, apoiado pelos comunistas (os ‘vermelhos’ como os denominava a grande imprensa), a serviço da subversão, isto é, a serviço da revolução bolchevista ou de uma indefinida ‘república sindicalista’. Até a liderança de Juscelino era fator agravante, pois seu liberalismo estava associado a um populismoperigosamente ‘desenvolvimentista’.Considere-se que era esse um período de baixa profissionalização e alta partidarização das Forças Armadas brasileiras, as quais, ferrenhamente anticomunistas, operavam guiadas pelos interesses norte-americanos confundidos com os interesses ocidentais, o ‘nosso’ lado. Vivíamos o calor da GuerraFria.

Assim se explica porque a política brasileira se havia acostumado com a participação indisciplinada dos militares, auto- investidos como poder supremo da República, a quem competia, sempre, a última palavra. Assim também se explica porque hojetanto comemoramos os anos contínuos de estabilidade e ‘não-pronunciamentos’ vividos desde o retiro do último ditador.
A saga das intervenções, depois do primeiro golpe que nos deu a República, registra insurreições e intentonas dos mais diversos calibres, como o levante do Forte de Copacabana em 1922; o levante tenentista de Isidoro Dias Lopes (São Paulo) e de Prestes (Rio Grande do Sul), ambos em 1924; o início da Coluna Prestes (liderada pelo major Luís Carlos Preste e pelo general Miguel Costa) e da qual participariam, entre muitos outros militares, os futuros marechais Juarez Távora e Cordeiro de Farias,1925); a ‘Revolução’ de 1930 e a deposição do presidente Washington Luís; a ‘revolução’ constitucionalista de São Paulo (1932), tentativa de retorno das forças da ‘República Velha’; o levante militar da Aliança Libertadora Nacional, conhecido como ‘intentona comunista’ (1935); o golpe militar instituidor do Estado Novo com Vargas (1937); a tentativa de tomada de assalto do Palácio Guanabara– residência do ditador– por militantes e militares integralistas (1938); o golpe militar que depõe Vargas (1945); a deposição e suicídio de Vargas (1954); a tentativa de golpe para impedir a posse de JK e o contragolpe militar (1955); sublevação de oficiais da Aeronáutica, em Jacareacanga-PA(1956); sublevação (de novo, oficiais da Aeronáutica) emAragarças-GO(1959); a tentativa militar de impedir a posse do vice-presidente João Goulart (1961); e, afinal, o golpe militar de 1964.

Esse quadro poderia sugerir que a sociedade aceitasse como fato normal os ministros militares informarem ao presidente interino em agosto de 1961a inconveniência de o vice-presidente da Repúblicaassumir a Presidência, como ordenava a Constituição de 1946. Ao invés de destituir e punir os ministros insubordinados, Mazilli acatou a indisciplina, dela transformando-se em cúmplice, ao transmitir ao Congresso Nacional a comunicação insólita, como senha para o impeachmentque não se consumou.

Recordemos os fatos.

Rejeitada em todos os pleitos que disputou, a UDN encontrara na carreira solo de Jânio Quadros, vereador e prefeito paulistano, deputado estadual, prefeito de São Paulo, governador do Estado e deputado federal, a possibilidade de, através de uma carona, finalmente chegar ao poder, que lhe era sistematicamente bloqueado pela via eleitoral.

Frustrada com a renúncia, buscava, agora, uma vez mais pela via fácil do golpe militar, manter-se à tona, pois a posse de Jango significaria o retorno da derrotada aliança PSD-PTB ao poder, desta feita tendo os trabalhistas no comando.
Mas as eleições de 2 de dezembro trouxeram duas consequências significativas: “Primeiro, saiu das urnas eleito presidente o candidato das forças identificadas com a ditadura recém-derrubada, a saber, o general Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra e condestável militar do Estado Novo; segundo, elegeu-se uma assembleia constituinte em que aquelas mesmas forças oriundas do passado se legitimaram enquanto maioria dominante no colégio soberano incumbido de formular as bases do futuro estatuto constitucional da nova República”. Fôra possível ao udenismo, porém, conformar-se com a eleição de Dutra, pois, nada obstante suas ligações com o varguismo, tratava-sede general conservador, anti-comunista e defensor do hegemonismo norte-americano, que lhe abriria as portas do governo. O indesejável retorno do ditador, pela via eleitoral (1950) havia sidoconjurado com sua morte (1954) e a posse do vice, rendido ao udenismo. Esse intermezzo, todavia, estava sendo ameaçado por aquele varguismo vivificado pela aliança de conservadores, trabalhistas e comunistas em torno dos candidatos da aliança PSD-PTB. Café Filho que participara da conjuração contra Vargas, tudo faria para impedir a candidatura, primeiro, com a tese da ‘União nacional` que dependia da renúncia do ex-governador de Minas Gerais; candidatos eleitos, JK e Jango, era precisoimpedir-lhes a posse.
Tudo seria feito. Os ‘bacharéis’ da UDN intentariam impedir a diplomação dos eleitos inquinando-a nos tribunais sob a alegativa de não haverem os candidatos alcançado uma maioria absoluta (metade mais um dos votos válidos) que a Constituição não previa. Vencida essa alternativa, restava a eficaz ferramenta de sempre, o golpedeEstado, finalmente frustrado pela inesperada reação do general Lott, afastado das maquinações e imprudentemente demitido pelo presidente da Câmara dos Deputados no exercício da Presidência da República que assumira em face do pedido de licença de Café Filho para tratamento de saúde, recebido como senha para ogolpe.

Demitido por não haver conseguido punir coronel indisciplinado, o gal. Lott termina por se insurgir contra a ruptura constitucional – para a qual, aliás, não fôra convidado. Com o apoio do comandante do I Exército, responsável pela segurança da capital da República, gal. Denis– que anos depois estaria no epicentro da tentativa de impedir a posse de Jango–, cerca o Congresso e o leva a votar,em horas, o impedimento sucessivodo presidente licenciado e de seu substituto, e dá posse ao presidente do Senado Federal, senador Nereu Ramos, que passaria a faixa presidencial em 31 de janeiro de 1956 a Juscelino Kubitschek de Oliveira, na última transmissão de cargo realizada no Palácio do Catete.

No 11 de Novembro, impedido de reassumir a Presidência, Café Filho é aconselhado a não sair de casa, e, da janela de seu apartamento em Copacabana, devidamente ‘protegido’ pelas tropas de Lott e Denis, assiste à movimentação militar. Carlos Luz, acompanhado de seu séquito (ministros e deputados como Bilac Pinto e Carlos Lacerda) embarca no Tamandaré, navio da Marinha de Guerra e, sob o comando do risível almirantePena Boto, ruma na direção de Santos, onde esperava a acolhida do arisco e insondável governador Jânio Quadros.Sem a qual retorna.

Nesse ínterim, o Ministro da Aeronáutica, o inefável Eduardo Gomes, voara até São Paulo, da mesma forma em busca de apoio. Regressa igualmente de mãos abanando. Nenhum insurgente militar é punido, e todos voltam a funções de comando, com as consequências conhecidas. Lacerda asila-se na embaixada de Cuba (presidida, naquele então, porFulgêncio Batista), para em seguida partir para doce vilegiatura nos EUA,até retornar ao Rio de Janeiro e à Câmara dos Deputados e ao seu jornal, de onde comandará violentíssima oposição ao governo, no mesmo nível daquela que devotara a Vargas. Assim, volta tudo como dantes no Castelo de Abrantes.

A História ainda nos reservaria a crônica de muitos golpes.

Eis como conheceríamos a experiência de um golpe militar praticado ´em nome da legalidade’, porque interposto havia sido para assegurar o respeito à soberania popular expressa na eleição da dupla JK-Jango. Contracenávamos, de forma premonitória, com a primeira campanha nacional pela legalidade, então simbolizada na posse dos eleitos, defendida pelas forças populares e por eminentes políticos e juristas liberais, entre os quais se destacaria o líder católico e advogado criminalista Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1893-1991), antigo advogado de Prestes e histórico adversário do varguismo.

Sua figura quase quixotesca, mas animada de uma bravura lúcida e de inigualável coragem cívica, voltaria à cena principal na segunda crise da legalidade, a de agosto de 1961 e, até seus últimos dias, seria intransigente paladino do império da lei, movendo combate à ditadura militar instaurada em 1964 e liderando a defesa de seus perseguidos políticos. Uma de suas últimas intervenções seria no monumental comício do Rio de Janeiro pelas eleições diretas, em10 de abril de 1984. Mas o grande símbolo dessa que chamaremos de primeira crise da legalidade, a de 1955, seria o Ministro da Guerra, Teixeira Lott, identificado como o ‘marechal da legalidade’, fazendo-se merecedor de uma espada de ouro, entregue em praça pública pelas lideranças operárias ligadas ao trabalhismo e lhe passada às mãos pelo vice-presidente Jango, sem que nem um nem outro soubessem que seriam companheiros de chapa nas eleições de 1960. Pois, tal seria sua preeminência que, ideologicamente reacionário, mas intrinsecamente profissional, disciplinador e nacionalista, Lott tornar-se-ia o candidato de JK e das esquerdas nas eleições antecipadamente perdidas de 1960. Perdidas para Jânio. Esta história começa em agosto de 1961, mas precisamos contá-la a partir do governo JK.

Não obstante as ridículas intentonas de oficiais da Aeronáutica, e as seguidas tentativas de impeachment, com as quais a UDN procurava, no Congresso, juncá-lo de dificuldades, o quinquênio JK, mais festejado na posteridade do que na sua contemporaneidade, caracterizar-se-ia pelapermanente tentativa de desarmamento dos espíritos, pela conciliação e composição com os adversários da véspera, chegando mesmo o Presidente a estender a mão aos militares insurretos agraciados com anistia.
Era,JK, desde a redemocratização de 1946, o primeiro mandatário jovem (53 anos), relativamente jovem em face das idades de seus antecessores; armado de discurso cativante, alegre mas determinado, pois seria armado de inegável voluntarismo que imporia sua candidatura à máquina do PSD, venceria as dificuldades interpostas à sua diplomação e posse e, finalmente foi como um líder obsessivo que logrou a construção de Brasília e a transferência da capital. Governava um país que se sentia jovem,o que, portanto, facilitava a identificação entre o governante e seu povo, por ele despertado para o desenvolvimento, para o progresso e– horror supremo dos conservadores–para a industrialização. Rasgou estradas, construiu barragens e investiu na geração de energia elétrica, deu os passos decisivos para a implantação do que se chamaria de indústria automobilística brasileira, optando por importação de montadoras de máquinas obsoletas e sem transferência de tecnologia, mas trazendo para o povo até então sem esperanças e condenado eternamente à sua ‘vocação agrícola’,a expectativa de emprego e a certeza de que o progresso era possível. E, acima de tudo, ousou construir a nova capital, numa saga que mobilizou todo o país – com suas consequências políticas e geopolíticas, estratégicas, culturais, urbanísticas e administrativas, antropológicas, sociais e administrativas–, transformando camponeses sem terra em operários da construção civil, levando vidavidalevandocvida para vida à imensidão vazia do Cerrado, e deslocando a migração para o Oeste. Foi nos ‘anos dourados’ de JK que o Brasil se tornou campeão mundial de futebol, conheceu o Cinema Novo e a bossa-nova; era o Brasil que dava adeus aos políticos carrancudos para amar um presidente seresteiro e pé-de-valsa. Atrelado aos EUA em termos de política internacional, e de seus empréstimos dependente para pagar as contas –em cuja coluna de débito pesava Brasília – penúltimo aliado do colonialismo português, seria, porém, o governo JK, o primeiro a romper com o FMI. Mas era também, esse, o Brasil da inflação galopante e da corrupção ‘fora de controle’, o grande tema da oposição. A imprensa daqueles anos, menos monopolizada, mais radiofônica e gráfica, e talvez mais poderosa do que agora, naquele então como agora cascavilhava podridão nos mais recônditos escaninhos do poder público, e então, diferentemente de agora, fazia opinião contra o presidente e contra elemobilizava a classemédia.
Eis como um governo de sucesso – sucesso tanto mais significativo quanto a crônica se afasta temporalmente do objeto sob observação – não consegue (diferentemente de agora, com Dilma sucedendo a Lula que sucedera a si mesmo) eleger seu sucessor.
O Presidente é pessoalmente querido, mas seu governo termina encarnando dois males que apavoravam a classemédia (o povo, o povo-massa que emerge com Lula, era ainda o grande ausente, ou pasto do discurso populista, intrinsecamente reacionário): a inflação que corroía seus salários, e a corrupção apontada como a fonte de todos os males do país, caruncho que ameaçava destruir as entranhas da nação. Essa dupla deletéria, aqui e em todas as democracias, as consolidadas como a nossa de agora, as frágeis como a nossa de então, esse complexo formado, de um lado, por salários baixos e diminuição do poder aquisitivo derivado da inflação, e, de outro, pela corrução que se dizia disseminada, servia também para desmoralizar os políticos e a política, despolitizada, esvaziar o discurso programático (o projeto de Brasil, por exemplo), inviabilizar a disputa ideológica, abrindo espaço, aqui e em toda parte, à ascensão dos arrivistas, do populismo conservador, dos salvadores da Pátria e, saber-se-ia depois, e de novo, dos golpistas.

O cantochão moralista de Carlos Lacerda e da ‘banda de música’ da UDN (Aliomar Baleeiro, Afonso Arinos, Bilac Pinto, Adauto Lúcio Cardoso entre outros), na tribuna parlamentar e na imprensa, aqui e ali armada de virulência inexcedível, associar-se-ia ao moralismo de Jânio Quadros, moralismo de fancaria que o orador histriônico utilizava com maestria para eletrizar as massas. O mote de seus discursos, tanto quanto seu programa de governo, se reduziam ao símbolo de sua campanha, uma vassoura, com a qual o futuro presidente, esta a sua promessa, ‘varreria a bandalheira que assolava o país’. Cinquenta anos passados, surgiria, sem igual sucesso, mas com igual intuito, a bandeira da ‘faxina’…, empunhada pela mesma imprensa.
Assim, com a vassoura e as vassouradas, varrendo a corrupção e os corruptos, demitindo funcionários públicos, ‘uma praga que carcomia o Estado’, JQ prometia resolver todos os nossos problemas. Eis como o país que amava JK elegeria seu adversário (que prometia a cadeia para o ex-presidente), numa oferenda de mais de 48% dos votos válidos. Mas de contrapartida, também elegeria João Goulart, candidato a vice na chapa de Teixeira Lott.

Não cabe aqui a crônica de Jânio Quadros, especialíssimo personagem da política, ator cujo método escamoteava no disfarce das excentricidadespropositalmente expostas para sugerir psicopatias, fazendo a alegria da verve simplória dos comentaristas políticos.

Conhecida fotografia tomada do Presidente no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, o corpo caminhando num sentido e os pés noutro, que voltou a circular nas páginas de imprensa dedicadas a esses 50 anos de sua renúncia, foi e é utilizada como retrato de uma esquizofrenia política, apontada como a materialização das dúvidas e da insegurança, do não saber aonde ir, do não saber o que fazer, ou simplesmente como revelação de uma mente sem rumo.

Sua campanha eleitoral, cheia de idas e vindas, inclusive de renúncias e retornos, e seu governo, modelo de ziguezagues, suas contradições, seriam fruto de um conflito interior que conheceria seu clímax numa renúncia impensada. Assim na vida, assim nas campanhas eleitorais, assim no governo. Daí a renúncia, como simples desatino.

Nada, porém, mais falso, porque nada nesse homem fugia da racionalidade cartesiana; nada era improviso, mas estudo, cálculo, avaliação, antecipação de efeitos. Ator dedicado ao estudo e construção do personagem que criava e interpretava para o delírio da plateia. Assim eram escolhidos os amigos e os inimigos, os gestos e os discursos, os atos e os fatos, os amores e os ódios, os rompantes e os afagos, e suas ideias e sua visão de mundo. Seu azimute, o Norte de toda a vida, era o poder. A arte se destinava a conquistá-lo.

Por método, não se ligou a nenhum partido político, embora por quase todos transitasse, até pelo PTB de Jango, seu adversário, por cuja legenda se elegeria deputado federal pelo Estado do Paraná. Seu projeto, personalíssimo e personalista, exigia voo solo, isto é, sem compromissos, até porque não tinha o hábito de honrá-los. Na sucessão de JK sabia que sua alternativa (recusara a candidatura que lhe fôra oferecida em 1955) era a oposição, e na oposição falando ao moralismo da classemédia. Seu melhor aliado, mas aliado de ocasião, haveria de ser, nas circunstâncias, Carlos Lacerda– que, ademais, seria utilizado para anular as resistências da UDN. UDN essa que cortejou, porque na campanha de âmbito nacional carecia de um mínimo de estrutura nos Estados, o que não se consegue apenas com discursos. Na campanha, candidato da direita, explorou as contradições reacionárias do candidato das esquerdas e, para espanto de seus partidários e inquietação dos adversários, defendia a Petrobrás (sempre ameaçada, como nos lembra o governo FHC), o reatamento das relações do Brasil com os países do Leste Europeu, a aproximação com os não-alinhados (como o Egito de Nasser, a Índia de Nehru e a Iugoslávia de Tito); defendia Cuba, e chegou mesmo a interromper a campanha eleitoral para visitar Havana, aceitando convite que Lott recusara, como ele recusara, ao contrário de Lott, convite para conversar com o embaixador norte-americano.

No governo, aliou uma política externa independente– desamparando o colonialismo português e promovendo aproximação com a China Popular e o reatamento de nossas relações diplomáticas com a União Soviética, a resistência à intervenção norte-americana em Cuba–a uma política interna conservadora, monetarista, recessiva e antidesenvolvimentista, segundo as melhores regras do FMI– com o qual, vimos, rompera JK, quando pressionado para reduzir os gastos com a construção de Brasília, responsabilizados pelos altos índices de inflação do país. Uma e outra políticas haveriam de ter, na superficialidade, aspectos histriônicos.De um lado, foi pelo menos muito ríspido com o embaixador plenipotenciário norte-americano, Adolfo Berle Jr., que condicionara a ajuda financeira que o governo brasileiro pleiteava a alterações em nossa política externa, especialmente no que se relacionava ao apoio a Cuba, e fez questão de que o incidente se tornasse público; teria ameaçado derrubar avião militar norte-americano que, em águas territoriais brasileiras, vigiavao Santa Maria, navio mercante sequestrado por insurgentes portugueses comandados pelo Almirante Henrique Galvão, a quem, como a seus companheiros de empreitada, deu asilo. No dia 19 desse agosto, já mirando o dia 25, condecora Ernesto Che Guevara, Ministro da Indústria e Comércio de Cuba, com a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul, e lhe presta, com direito a desfile de tropas militares, as honras de chefe de Estado, provocando a ira do governador Carlos Lacerda, que ameaça renunciar ao governo da Guanabara “para lutar como cidadão comum contra a comunização do Brasil pela política externa.” Antes, no dia 3, havia condecorado o major Yuri Gagarin, herói soviético, que acolheu como hóspede oficial do governo, com a Comenda do Mérito Aeronáutico. Ao mesmo tempo, demitiu funcionários públicos, aumentou o expediente funcional, abriu comissões de inquérito por toda parte para apurar atos de corrupção, proibiu rinhas de galos, desfile de misses com biquíni e a fabricação de lança-perfume.

No plano político, desenvolveu imperial desprezo pelos partidos e pelo Congresso, que, dizia, tornava o país ingovernável, fazendo questão que esses humores fossem conhecidos da opinião pública – a qual, já então, e pelas razões de sempre, devotava especial desapreço pela política, pelos políticos e pelo Congresso, considerado ineficiente, caro e corrupto. Precisava de um inimigo, e elegera um: o Congresso.

Muitos anos depois, outro presidente, igualmente joveme igualmente catapultado aos píncaros do poder pela pregação moralista (neste caso, a vassourada fôra substituída pela ‘caça aos marajás’) e pelo consequente apoio da grande imprensa,também governaria, ou tentaria governar, apesar dos partidos e apesar do Congresso. Foi alcançado por um impeachment.
Em comum, esses dois personagens trágicos de nossa história têm o provincianismo, a auto-suficiência, o autoritarismo; ambos, no Governo, se cercaram de suas amizades municipais, despreparadas para as questões de Estado, estranhos à vida política do país. Ambos detestavam os partidos e a vida partidária, ambos menosprezavam o Congresso.

Mal passados sete meses de governo (Jânio tomara posse a 31 de janeiro de 1961), o país é surpreendido por sua renúncia e o renunciante surpreendido pela sua aceitação pronta pelo Congresso nacional, naqueles anos mais do que agora esvaziado nos fins-de-semana, mas naquela sexta-feira, 25 de agosto, dia surpreendentemente de casa cheia. O Presidente fortíssimo que planejara nas minúcias um golpe deEstado, ver-se-ia surpreendido por um Congresso fraquíssimo aceitando sua renuncia, dando posse ao seu substituto eventual e assim aplicando com sucesso um contragolpe.

Conta-se que o renunciante, na madrugada do dia 25, precisamente às 5h30, reuniu-se com seus auxiliares mais próximos –sabe-se das presenças de José Aparecido de Oliveira e do general Pedro Geraldo (Chefe do Gabinete Militar) – e anunciou-lhes a renúncia. Sabe-se que, antes de enviar seu bilhete ao presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, senador por São Paulo e homem do PSD, teve outro encontro, este com seus ministros militares,e deles ouvira emocionados apelos pela sua volta, pela renúncia à renúncia, ao preço de, se essa fosse sua vontade e condição, fecharem o Congresso, decretarem o estado de sítio e mesmo deporem Carlos Lacerda, agora o grande desafeto do Presidente. Jâniorefugou. Mas tarde, recusaria o chamamento de Brizola à ‘resistência’ ao golpe que não houve. Nada alteraria plano adrede arquitetado. Foi à Esplanada para o desfile do Dia do Soldado e já às 11h embarcava no Viscount presidencial, rumo a São Paulo, Guarulhos, com rápida escala em Congonhas onde recebe o banqueiro José Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais e presidente nacional da UDN, e futuro destacado articulador do golpe de 1964, que retornava a Belo Horizonte após encontro com Carvalho Pinto, governador de São Paulo. Amorà democracia? Resistência ao golpismo? Não. De novo, o método. O Presidente contava com o levante das massas, em cujos braços esperava retornar ao poder, agora um poder pessoal, sem peias, sem Congresso e sem amarras, toda e qualquer amarra, como aquela que derivaria do gesto solidário de seus ministros militares, se o aceitasse. Voltaria triunfante como voltara, após a renúncia à sua candidatura, para livrar-se do candidato a vice, Leandro Maciel, que a UDN inicialmente lhe destinara.
Mas, como lembraria mais tarde Carlos Castello Branco, arguto observador da cena, esquecera-se de que a longa lição da História é que ‘não há movimentos populares espontâneos’.

Consabidamente apaixonado pelas renúncias-retorno de Fidel Castroe Charles De Gaulle, Jânio esperava retornar com poderes absolutos, como retornaram seus modelos, sagrados pelo poder das massas. Esquecera-se, porém, da advertência de Marx no 18brumário: aHistória,quando se repete, a primeira vez é como tragédia, a segunda como farsa. A farsa da renúncia não desejada descambou na perda do mandato e na quase tragédia que foram seus desdobramentos, com o país à beira da guerra civil, dando as costas ao renunciante e exigindo a posse de Jango, que seus ministros militares, de Jânio, tentarão impedir.

Nos dias aflitos daquele agosto, porém, a versão dos fatos (dos fatos passados e mesmo dos fatos presentes só podemos almejar versões), não poderia dispor da clareza que só a distância dos anos, e meio século de vida e muita pesquisa acadêmica e muita bibliografia, podem oferecer. Naquela tarde e na noite que a ela se seguiu, muitos políticos (para não falar de jornalistas e multidões de estarrecidos e frustrados janistas) chegaram a admitir que o Presidente fôra forçado à renúncia. Afoito, Fidel Castrofoiàtelevisão cubana conclamar o Presidente à resistência. O governador Leonel Brizola, ainda ignorante do papel que a História lhe reservara, observando os idos de agosto de seu distante Palácio Piratini, chegou insistentemente instá-lo à resistência, oferecendo-lhe o abrigo seguro do Rio Grande do Sul. Mas, já na madrugada, o Partido Comunista Brasileiro, então exercendo a hegemonia ideológica de esquerda, indiferente aos salamaleques do Presidente em direção da União Soviética e os ensaios de uma ‘política externa independente’, que o chanceler San Tiago Dantas aprofundaria no futuro governo de Jango da fase parlamentarista, fez soar a palavra de ordem que daria rumo ao movimento social (leia-se movimentos sindicais e estudantis), dando novo norte ao curso dos acontecimentos. Se o povo, desorganizado, de forma autônoma e espontânea, mas anárquica, correra às ruas do país, no meio da tarde, em todo o país mas principalmente na então Guanabara, gritando ‘Jânio sim, Lacerda não’, já à noite, o movimento organizado, os sindicatos, a poderosa UNE e seus espaços de influência gritavam ‘Posse de Jango!’.
As massas obedeceriam.

O plano da renúncia-retorno, meticulosamente maquinado começava a enfrentar o efeito corrosivo da realidade objetiva, do peso das circunstâncias e das contingências humanas. Jânio, que não lera Hegel e assim jogara suas fichas todas na certeza de que os fatos históricos poderiam ser reproduzidos, como ensaio de laboratório, não conhecia a lição de Marx advertindo os candidatos a feiticeiro para os limites do voluntarismo:

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

O resto é História consabida. Relembremos, porém.

Na manhã do dia 25 de agosto, Dia do Soldado, o Presidente Jânio Quadros, depois de passar em revista a tropa, regressa ao Palácio do Planalto, deixa com o ministro Pedroso Horta, seu Ministro da Justiça, o bilhete-renúncia, escrito à mão, e as suas razões, e zarpa no avião oficial com destino a São Paulo. Por via das dúvidas, um de seus ajudantes de ordem, Major Chaves Amarante, “inconformado com a renúncia, vestira a faixa presidencial sob sua túnica antes de deixar o Palácio da Alvorada, levando-a consigo. Horas depois, apenas horas depois, ou seja, já por volta das 15 horas, seu secretário de imprensa, Carlos Castello Branco –ícone da imprensa brasileira –, reúne os repórteres credenciados e lê o comunicado da renúncia que, simultaneamente ou em seguida, seria formalizada junto ao Congresso.

Por que tanto retardo para a entrega do bilhete-renúncia?

O Congresso não deveria estar reunido, mas estava. O Presidente do Senado não deveria receber o bilhete-renúncia. Recebeu. Recebido, deveria submetê-lo à apreciação pelo menos da Comissão de Constituição e Justiça e remetê-lo à consideração do plenário, ou manda-lo à publicação. Auro de Moura Andrade, porém, convocou sessão do Congresso (reunião conjunta das duas Casas) e simplesmente anunciou a renúncia como ato unilateral de vontade, portanto insusceptível de apreciação. Declarou em seguida vago o cargo e a assunçãoautomática do presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazill, pessedista de São Paulo como ele, o primeiro na sucessão constitucional, em face da ausência do vice-presidente João Goulart, naquele momento chefiando, por designação diabólica de Jânio, missão diplomática na então assustadora China comunista de Mao-Tsé-Tung.Assim, uma decisão monocrática e administrativa, que equivaleu a um golpe de Estado parlamentar,seria a pá-de-cal no projeto de renúncia-retorno, o golpe que não deu certo. Jânio, que apostara no veto esperado dos militares a Jango, apostaraigualmente na crise e no caos decorrentes da vacância e do vácuo de poder;a esperada irresolução do Congresso daria tempo à ocupação das ruas pelas massas.

O que se efetivou, porém, foium verdadeirogolpe de Estado relâmpago do Congresso, levado a cabo quase em legítima defesa.
Ora, a renúncia fôra comunicada oficialmente às 15 horas do dia 25 e já às 17 horas e cinco minutos o Congresso era chamado para assistir à posse do novo presidente às 17 horas e 15 minutos, no Palácio do Planalto.

O avião presidencial já levara Jânio Quadros de volta a São Paulo, enquanto tombavam uma a uma as peças do jogo por ele arquitetado. O povo não estava nas ruas pedindo seu retorno, e fôra um desastre seu encontro com Carvalho Pinto, elemento estratégico do esquema, pois, sem que ele soubesse, caber-lhe-ia, no plano,fazer pelo retorno de Jânio o que ninguém sabia que Brizola faria pela posse de Jango.

Abandonado pelos fados e pelos homens, Jânio deixa Cumbica, isolada por tropas da Aeronáutica, onde ficara alojado na residência do comandante da Base Aérea. No último contato com os poucos auxiliares que o acompanhavam na derradeira viagem do poder, deixa transparecer o sonho no qual ainda acreditava:

“Não farei nada para voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo. […] Pode ser que o processo demore mais do que o previsível, um ano até, dois. Mas é inevitável. […].”

Os fatos, porém, construiriam outra História.

Mais tarde,o já ex-Presidentetoma a direção de um automóvel DKV-Vemag e, acompanhado da mulher e de José Aparecido, ruma para Guarujá, depois Santos. Em seguida embarca para Londres, num navio cargueiro. A um representante da UNE, um de seus vices-presidentes, o estudante mineiro Mário Lúcio Alves Batista, que fôra ao seu encontro, promete aparecer no Rio em dois dias, insinuando um movimento de resistência.

O navio passa ao largo da Baía de Guanabara.

Encerrava-se a farsa que abria caminho à ameaça de tragédia. O esperado veto militar à posse de Jango e a inesperada reação popular com a qual não contavam os golpistas.

Tudo o que até aqui se expôs, sem pretensões do autor de estar escrevendo História, sobre as motivações da renúncia, foi, por muito tempo nesses últimos 50 anos, apenas interpretação trabalhada por repórteres, pesquisadores, cientistas políticos e mesmo auxiliares do ex-presidente. Desarrumando a versão da carta-renúncia, qual seja, a que indicava o ex-Presidente como vítima de forças poderosíssimas não reveladas, apodadas como ‘forças ocultas’, vasta bibliografia foi arrumada sobre a lógica tese de frustrada tentativa de golpe.

Mas, como provar objetivamente a existência de um plano do qual não se encontravam sequer rascunhos?

A contribuição histórica se deve a irrefutável depoimento do próprio ex-Presidente, ditado às vésperas da morte ao seu neto, Jânio Quadros Neto, que resolve trazê-lo à luz do dia quando todos celebram – não sei se éeste o melhor verbo –essas cinco décadasdos idos daquele agosto de 1961 que são também os primeiros 50 anos da Cadeiada Legalidade, mas essa é outra história dentro da mesma história:

“[…] Nesse dia, ele estava internado no Hospital Albert Einstein, já no final de sua vida (morreria menos de seis meses depois, no dia 16 de fevereiro de 1992). Mesmo muito enfermo, estava lúcido. No apartamento, a TV estava ligada, e o jornalista Carlos Chagas comentava a renúncia, analisando várias teorias. Ao ouvi-lo, Jânio ficou bastante irritado e até xingou em reação ao que ouviu. Naquele momento, criei coragem e perguntei: ´Então por que você renunciou?` Jânio respondeu: ´Aqueles que os deuses querem destruir, eles primeiro os fazem presidentes do Brasil. Quando assumi a Presidência, não sabia a verdadeira situação político-financeira do País. A renúncia era para ter sido uma articulação, nunca imaginei que ela seria de fato executada. Imaginei que voltaria ou permaneceria fortalecido. Foi o maior fracasso da História republicana do Brasil, o maior erro que cometi. Esperava um levantamento popular e que os militares e a elite não permitissem a posse do Jango, que era politicamente inaceitável para os setores mais influentes da nação na época.`”


Roberto Amaral é vice presidente Nacional do PSB e ex-Ministro da Ciência e Tecnologia. Texto originalmente publicado na Revista Comunicação & Política.

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