Os 70 anos de “Cidadão Kane”, EUA e as derrotas de Orson Welles

Ano sim e outro também aparecem por aí as velhas listas com os melhores filmes da história. São raras aquelas em que “Cidadão Kane” não aparece ao menos no top 3. Para muita gente que entende do ramo, nada mais justo, em especial por seus aspectos técnicos revolucionários e sua narrativa inovadora. Há um ponto, no entanto, que é pouco abordado e o engrandece ainda mais: sua contextualização política em um período delicadíssimo para a história dos Estados Unidos e de todo o planeta.

“Kane”, que neste mês completa sete décadas, foi planejado e produzido em meio a uma fase que marcou a ascensão de diversos regimes totalitários ao redor do mundo. Em 1941, ano de sua estréia, a França estava ocupada pela Alemanha nazista, a Europa se encontrava em polvorosa e os Estados Unidos, ainda se recuperando da crise econômica da década anterior, viviam o início de sua predominância política em nível mundial.

Se por um lado o governo Roosevelt se destacou por uma série de políticas progressistas, os anos de transição entre as décadas de 30 e 40 foram marcados pelo fortalecimento de setores conservadores, anticomunistas e favoráveis à entrada imediata do país na guerra. Diante desse cenário, o governo considerou por bem incentivar a produção de obras culturais que se contrapusessem ao reacionarismo que ganhava naqueles idos seu formato inicial – e cujo ápice seria visto durante a fase de caça às bruxas do macarthismo, já depois de encerrada a Segunda Guerra Mundial.

Vem desse incentivo do governo Roosevelt o surgimento de grupos teatrais como o Mercury, no qual Orson Welles – e grande parte do elenco de “Kane” – ganhou notoriedade. Essa política fazia parte do WPA (Works Progress Administration), programa voltado para a geração de empregos durante a Depressão. Havia liberdade criativa e o fomento necessário para experimentação, além de artistas compromissados com o modelo político adotado.

Welles chegou a apresentar “MacBeth” no Harlem, com a participação de 137 negros, entre atores e outros profissionais do teatro. Em 1937, sua leitura de “Julio Cesar” se transformou em ataque direto às políticas de Hitler. Antes de pensar seriamente no cinema, o jovem diretor (25 anos no começo de 1941) almejava encenar toda a obra de Shakespeare a preços populares e em bairros sem o glamour da Broadway. Apesar de sua inexperiência no ramo cinematográfico, Welles já acumulava a pecha de gênio do teatro e do rádio, e conseguiu carta-branca para rodar o filme que bem entendesse.

Cinema além do entretenimento

Nesse contexto, a personagem-título do filme representa exatamente o estereótipo do totalitarismo ascendente em algumas partes do planeta, defendido por setores políticos norte-americanos e insuflado por parte de sua imprensa. Não por acaso, William Randolph Hearst, magnata das comunicações e inspirador do Kane levado às telas, possuía relações com membros do governo nazista alemão e costumeiramente utilizava as paginas de seus jornais para atacar as ações “socialistas” de Roosevelt. Orson Welles, ao longo das quase duas horas de filme, consegue criticar, denunciar, ironizar e apresentar com maestria um tipo de cinema que alia excelência técnica e dramática à reflexão crítica.

Assim como Serguei Eisenstein e Leni Riefenstahl (cada qual com seus vieses), Orson Welles contribuiu para aumentar a lista de gênios que se valeram da arte como ferramenta de uso político. Contudo, embora estivesse brigando no canto correto do ringue, a história foi cruel com o diretor de “Cidadão Kane”, ao impor-lhe duas derrotas por nocaute.

Hearst era um crítico voraz do WPA e de grande parte das políticas de Roosevelt – como a decisão de aumentar os impostos daqueles com mais de US$ 500 mil na conta bancária. Se apenas por esse motivo o choque com Welles seria inevitável, depois de “Kane” a situação fugiu do controle. Sem conseguir impedir a estréia do filme, o empresário dedicou inúmeras páginas de seus jornais para estampar no diretor prodígio o carimbo de “comunista” e utilizou toda sua influência junto aos estúdios de cinema para boicotar sua carreira.

No campo político, apesar da vitória dos Aliados no conflito mundial, Welles viu o surgimento e o recrudescimento do macarthismo em seu país, bem como a ascensão de dois presidentes conservadores (Harry Truman e Dwight Eisenhower) no período seguinte à Segunda Guerra. Dentro de seu métier, além de nunca mais ter produzido nenhum outro filme à la “Kane” e de ter sido, de fato, boicotado pelos grandes estúdios, o cineasta assistiu, impotente, à vitória e à popularização de um modelo artístico completamente diferente de sua proposta: Hollywood.


Fernando Damasceno é subeditor do Portal CTB

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