Você saberia responder à pergunta-título deste texto? Poucos são os que sabem, uma vez que nem sabem, ou tentam esconder, questão tão explícita que é o preconceito em nossas vidas, mas que por razões díspares escamoteiam-no. Nosso país não se exprime oficialmente como racista e preconceituoso; e, decerto, seus membros também não o fazem, muito embora quem passe por tais constrangimentos possa evidenciar no dia-a-dia as práticas humilhantes transmutadas em brincadeiras, quando não em notas explícitas. Entretanto, volta e meia eclode notícias de atos racistas ou/e preconceituosos na imprensa nacional (e internacional também…). Alguns são apenas a manifestação da valorização do caso por parte desta mesma mídia – quem não se lembra do caso Grafite? –, que, como todos estamos cansados de saber, visa muitas vezes apenas à audiência, e consequentemente aos lucros. Outras já são fatos de extremado repúdio que, estagnados e estupefatos, observamos como algo do tipo pode ainda persistir em existir (?).
Coisas como uma garota impedida de entrar em uma sala de aula pelo tom e o tamanho do vestido; seguranças barrando indivíduos de entrar em “locais” por não estarem adequadamente vestidos, mesmo que estes locais sejam públicos; ou particulares, como o “barrado no baile” tenha pagado para entrar; ou ainda pessoas do mesmo sexo sendo repreendidas, agredidas e retiradas à força de lugares públicos por apenas se supor sua orientação sexual. Poderíamos elencar inúmeros casos aqui de preconceito, mas não é o caso. Seria enfadonho. O estanque é saber que a questão do preconceito é uma realidade em nosso país, como também a questão racial não é apenas uma questão de desigualdade econômica.
A perversa matemática social
Nas últimas semanas, pudemos observar exemplos públicos dessas manifestações. Primeiro foi o caso da banana atirada no jogador da seleção brasileira de futebol, Neymar, em partida contra a Escócia (fora do Brasil…); depois, o caso pavoroso do deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ), que além da manifestação racista, foi também homofóbico, algo até notório para ele, que em medida alguma tenta disfarçar, aliás, ele bem que faz de mostrar. Como não há impedimento algum, ele, o político, não se constrange em agredir, os homossexuais. Que o deputado, e/ou quem quer que seja, não goste de gays, lésbicas e simpatizantes, e também de negros, pobres e maltrapilhos, ninguém tem nada a ver com isso, é problema dele, mas daí a sair proferindo impropérios contra estes, agredindo verbalmente ou fisicamente, ainda mais partindo de pessoa pública; com investidura pública, aí é absurdo! É caso de investigação e, comprovado o delito, punição.
Os dois casos acima citados, dizem respeito a pessoas públicas, o segundo ainda envolve uma “artista” filha de um grande artista brasileiro que foi ministro de governo etc. Mas há um terceiro caso, que não envolve nenhum político, artista ou jogador de futebol e foi pouquíssimo explorado pela imprensa nacional. Normal. né? Trata-se do caso de um baiano de Feira de Santana, estudante de uma universidade pública gaúcha, que supostamente foi discriminado e agredido por policiais militares naquele estado. Helder Santos, 25 anos, mais conhecido em sua terra natal como Helder Ran, teve de deixar a cidade de Jaguarão, no sul gaúcho, após denunciar os fatos à Corregedoria da Brigada Militar do Rio Grande do Sul e à imprensa local, pois, segundo o mesmo, passou a receber cartas com ameaças de morte. Em vídeo produzido pela Catarse – Coletivo de comunicação, e divulgado no YouTube, o estudante narra uma série de fatos contra os policiais naquela cidade. Se comprovados, uma nódoa gigante para a corporação. Que, não obstante, deve-se dizer, já abrira uma sindicância para apurar os fatos e, segundo o comando, foram confirmados indícios de agressão corporal, abuso de autoridade e injúria racial – que difere do crime de racismo. Havendo a confirmação, este seria o crime mais apropriado para este caso em particular.
O Helder “Ran” Santos enquadra-se no biótipo específico para as abordagens indistintas das polícias: negro, rastafári, tatuado, “universitário”… Aliás, o tipo que a sociedade acha que é o marginal e por esta feita deve ser abordado pela policia, pois é um ladrão em potencial, não por sua condição de suspeição, mas por sua aparência. Na matemática perversa social, negro é igual a pobre, pobre é igual a marginal… A cada segundo, acredito piamente nos meus professores que outrora diziam em sala: “O Direito Penal nada mais é que peça de controle e exclusão social.”
“Posturas hipócritas contra o racismo”
É através desse mecanismo que o status quo se mantém. A tão propalada “fundada suspeita”, que nós, policiais, nos arvoramos em dizer que é a que nos pauta em nossas abordagens, é a suspeita do fácil, é a do estigmatizado pela sociedade que o quer longe por sua aparência, por sua condição financeira, sexual, por seu biótipo descaracterizado. Nós, que somos produtos dessa mesma sociedade consumerista – que exige a cor da pele, a textura do cabelo e o tom dos olhos, que mais comumente determina como nos vestir, se portar, as “drogas que usar”, o transporte adequado… –reproduzimos esse desejo e invariavelmente em nós mesmos, pois policiais na sua grande maioria saem dos guetos.
Não pense que esta é uma condição apenas de caráter sócio-econômico. Não, não é não. Um dos diretores executivo de jornalismo da rede Globo, Ali Kamel, nos idos de 2006 lançou um livro chamado Não Somos Racistas em que o autor debate a condição da política de cotas para negros nas universidades públicas. Livro muito bem escrito, com lógica e argumentação, mas a posição tomada pelo autor, esquecendo-se do que imprime a lógica do bom jornalismo, não surpreende – pende a argumentar para apenas um lado onde o discurso chega a tomar um viés proselitista. Apesar do esforço, não convence. Por inúmeros motivos, para ser suscito, cito Alex Castro:
“O racismo é um problema de classe social, oras, racismo é um problema socio-econômico, ou você acha que é um problema literário ou culinário?”
Pois como quer externar o autor, os dois estão intrínsecos, caminham juntos… O cotidiano de uma vivência negra, ou “diferenciada”, principalmente na periferia, é experiência única, e a harmonia pintada pelo jornalista global, não é tão harmoniosa assim, como bem cita Rogério Beier:
“… Sentindo na pele a discriminação racial da polícia, da escola pública, da saúde pública, das empresas privadas e de muitos segmentos da sociedade, que se escondem atrás de posturas hipócritas contra o racismo, jamais admitindo a não conformidade que sentem contra os afro-descendentes…”
Aparência fora do padrão aceito
Ou no belíssimo livro Preconceito e Discriminação, de Alfredo Guimarães, que através deste estudo nos mostra que a forte hierarquia social vigente e duradora do país é a causa principal do racismo, pois se há desigualdade, há racismo! E assim diz o autor:
“… Para combater o racismo e para reduzir as desigualdades econômicas, precisamos, antes de tudo, denunciar as distâncias sociais que as naturalizam, justificam e legitimam.”
O problema do Brasil é que, como o grande sociólogo Florestan Fernandes falou, as pessoas têm preconceito de não terem preconceito, o que dificulta qualquer tipo de estudo, ou qualquer tipo de tentativa de dissipar esses conceitos malformados e enraizados. Numa sociedade em que a grande maioria é negra, e esta mesma maioria é composta de miseráveis, e uma já relativa minoria branca é abastada e rica, com absoluta certeza, temos aí uma definição de sociedade racista!
É nesse ambiente que se reproduzem às máximas policiais, não que necessariamente todo policial seja um racista por excelência. Não, óbvio que não, mas alguns são dando conta disso ou não. Outros apenas reproduzem comportamentos sociais e institucionais, que muitas vezes enraizaram-se primeiramente, ou não pelo quesito sócio-aparente.
A partir de tal prisma, o insigne Daniel de Andrade cita em belo artigo sobre o tema, a pesquisa de Silvia Ramos e Leonarda Musumeci com grupos sociais diferentes, e nessa pesquisa demonstraram como dadas características estavam interligadas em diferentes classes sociais, podendo assim chegar próximo do que a sociedade define como “elemento suspeito” que por sua vez, deve ser abordado pela polícia. A aparência diferiria de grupo para grupo, todavia, em cada um dos desenhos seja de um negro com roupas caras, seja de um “punk”, demonstra características que chamariam a atenção da polícia, mesmo sendo desenhos de pessoas diferentes, porém sua aparência está fora do padrão aceito pela sociedade, ou seja, negro, mal vestido, “punk”, “tatuado”.
“A manutenção do poder”
“Vale ressaltar que, em todos os grupos focais pesquisados, a maioria das características elencadas se referia à aparência da pessoa e não a sua atitude ou gestos. Portanto, para os grupos focais isso é que conta mais, a aparência é o que determina para uma abordagem policial.”
Essa fundada suspeita social e policial hodierna é o efeito lombrosiano, abrasileirado por Nina Rodrigues, totalmente contrário à igualdade entre as raças frente ao Direito Criminal. Para ele, a superioridade dos brancos em detrimento dos negros e mestiços era de tal forma a comparar estes a animais em processo de civilização. Ainda hoje é assim, talvez nunca mude; é neste diapasão que se quer instituir uma busca pessoal indistinta por meio de metas e cronogramas, no alto de uma “fundada suspeita” subjetiva que, para muitos, está pautada na aparência. Pois como Ramos elenca:
“Mesmo tendo um alto índice de membros negros, sejam eles oficiais ou praças, as polícias militares, normalmente, contrariando as opiniões populares, se dizem não racistas. O acesso e a ascensão nas carreiras militares, tornam-se um atrativo para os negros e mestiços, pois, como são firmadas em hierarquia e disciplina torna a vida profissional menos preconceituosa do que a vida civil, trabalhando em uma empresa qualquer por exemplo. No entanto, a grande participação de negros nos quadros das corporações não muda a visão racista que se tem no momento da escolha de um suspeito.”
É sobre esse sistema penal, pelo fito do atual estado policial, que o conspícuo Juarez Cirino dos Santos, levanta:
“Todo esse sistema de controle social está no discurso oficial de que o direito penal serve para proteger os bens jurídicos, prevenir a prática de crimes, está representado por uma igualdade, por uma prevenção geral. No entanto se tem um controle social formado por diversas instituições, que trabalham para manter o mesmo sistema de controle que se repete há muito tempo, controlando as classes desfavorecidas em favor de poderosos, ou seja, a criminalização de fatos praticados pelas classes de proletários, um sistema que visa a garantir a manutenção do poder em relação à classe dominada…”
Não é bom guardar o que não presta
Temos muitos Helders Brasil afora que, independendo de serem negros ou gays, rastafáris ou roqueiros, maltrapilhos, tatuados etc., são pessoas. Até que se prove o contrário, sua aparência não deve criminalizá-los; tentar esconde que essa é a realidade também não ajuda. Achar que não se tem preconceito por pegar na mão de um negro é negar a si mesmo uma realidade; achar que infelizmente os negros são simplesmente mais propensos à criminalização e por isso merecem ser mais abordados pela polícia e a partir disso você deixa de ter culpa; e a culpa é sócio-econômica, é vendar-se, e recolher-se à ignorância da escuridão, tão racista quanto o preconceito homofóbico reproduzido pelo deputado Bolsonaro.
Enfim, devemos admitir que somos, sim, um país racista, nossa policia reproduz esse racismo intricado em nos, que transmutado em condição social é a face do puro preconceito que ainda nutrimos em nossas almas. As policias precisam debater abertamente o assunto e devem tentar ensinamentos de forma a agir distinta, com tolerância, com profissionalismo, e como disse o tenente PM blogueiro Danilo Ferreira: “Não é impossível, e seria belíssimo, que as polícias passassem a ensinar tolerância aos brasileiros.”
Então, onde você guarda seu racismo? Pela imposição etnocentrista, todos somos em dada medida preconceituosos e racistas; e em algum lugar está o nosso preconceito. Exorcize-o, tente, não é fácil, mas jogue-o fora, não é bom guardar o que não presta, apodrece.
Ewerton Monteiro – Policial Militar, graduando no bacharelado de Ciências Jurídicas da Faculdade Anísio Teixeira – FAT e graduando em Licenciatura em História na Universidade do Estado da Bahia – UNEB.