O consumo, tal qual o conhecemos, é uma criação do capitalismo. O hiperconsumo é uma necessidade do hipercapitalismo. Por isso gostamos tanto de Sex and the City: mais do que apologia ao consumo, a série e os filmes dela decorrentes se transformaram, no início deste século, numa lição de como consumir compulsivamente.
Quem podia se comportar como Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte passava a comprar com confiança bolsas enormes e exuberantes, joias em que a logomarca valia mais do que o metal e as pedras preciosas, e sapatos, sapatos, sapatos. E, para que os homens também fossem aceitos nessas aulas de hipercapitalismo, o homem-objeto de consumo era alguém que atendia pelo apelido nada discreto de “Mr. Big”, um operador do mercado financeiro, claro.
Quem não podia recebia, durante a exibição de cada episódio, uma dose de ilusão e, ao mesmo tempo, de conhecimento necessários para aceitar a dominação que nos é imposta diariamente pelo sistema (im)produtivo. Aprender o comportamento “ideal”, mesmo que não possamos segui-lo: assim a ideologia nos controla.
O prazer de ver Sex and the City vem justamente disso: o que nos outros filmes aparece envergonhadamente, ou melhor, desavisadamente, ganha ali um despudor ampliado por lentes de aumento e closes em produtos e marcas.
Sem meias palavras: a série de Carrie está para as demais assim como os filmes eróticos estão para os lançamentos banais de Hollywood. As marcas Gurgel, Telefunken, Motoradio, Champion, Bamba (troquei os nomes só de sacanagem, pra não fazer propaganda pra quem tem verba para isso) aparecem enormes, onipresentes, roubando a cena dos atores.
O que excita em Sex and the City não são as cenas de sexo – nem mesmo as de Samantha, a mais “ardente” das quatro fantásticas – que passam Nova York em revista. A identificação feminina vem das cenas de compra. Como anti-Cinderelas, o problema delas não é beijar o príncipe encantado, mas encontrar o sapato de cristal da estação. Não o sapato dos sonhos, porque o sapato dos sonhos não existe – quando ele é comprado, é como se o “orgasmo” da compra esgotasse todo o seu valor de uso.
Sem levar a sério nem Freud nem Marx ao mesmo tempo, poderíamos dizer que o fetiche da mercadoria acaba quando as meninas passam o cartão de crédito na maquininha.
Mas, se o consumo pornográfico de Sex and the City excitava, Sex and the City 2 brocha.
Voltemos à primeira versão cinematográfica.
Como num bom filme erótico, tudo parecia adequado ao clímax que vinha a seguir: cada cena tinha um objetivo único – mostrar uma marca e estimular seu consumo. Uma grife de roupas, um carro, um computador capaz de escrever os livros tão desejados de Carrie, um mecanismo de busca na web. Passamos o filme inteiro sem entender por que a personagem de Sarah Jessica Parker tinha uma televisão tão velha. Será que nenhuma empresa da área quis sua cota de patrocínio do filme?
Não, no final, Carrie compra uma TV último tipo. Não basta exibir o logo, não bastava deixar subentendida a negociação: era preciso exibir a cena crua e explícita da compra e da instalação da novidade na casa de Carrie. Claro que tudo isso embalado por um romance à moda do novo século, o XXI.
Seguindo o lugar-comum clássico da literatura erótica vitoriana, que buscou no final do século XIX a excitação no exotismo oriental, as mulheres de Nova York em crise econômica partem, em Sex and the City 2, para uma aventura no mundo muçulmano. Encontram num emirado árabe a promessa de luxo e prazer que, na cidade norte-americana, parecem estar proibidos – ficaram amorais em tempos de contenção. A fantasia tem, assim, de se deslocar para o desconhecido.
Ocorre que – isso está posto pelas regras do império – no mundo árabe não pode haver liberdade para a mulher; nem para comprar, vejam só (#ironia).
Quando Carrie e Miranda vão ao mercado, logo são advertidas de que haverá uma cilada, cuja isca é um relógio. No mercado, Carrie quer gastar, mas descobre que os sapatos que tanto a encantaram custam apenas 20 dólares. Em vez de excitação, a cara dela é de lamento: o preço é baixo demais para uma cena explícita de consumo. Comprar todos os sapatos da loja a esse preço, como descobriremos no fim do filme, será um gesto de amor e agradecimento, mas jamais de paixão.
Depois de alguma confusão rocambolesca, as nova-iorquinas vão encontrar o que desejam: num lugar fechado, escondido, as mulheres muçulmanas são, quem diria, iguais a elas, debaixo da burca. Realidade ou sonho de realidade? Será mesmo que o problema da mulher árabe e muçulmana é o mesmo da mulher nova-iorquina?
É preciso dizer, ao contrário do que alguém pode estar entendendo (e talvez essa seja a leitura mais comum da série e dos filmes), que Sex and the City não excita apenas as mulheres. Excita homens e mulheres. Porque assistir a cenas de consumo pornográfico é algo que está no desejo de todos.
A escolha que fazemos nós – roteiristas, diretores, produtores e público – por quatro mulheres estereotipadas (a sensível Carrie, a fogosa Samantha, a executiva Miranda e a “mulherzinha” Charlotte) tem tudo a ver com a fantasia que está por trás dessa história toda.
Os homens podem até fingir que não gostam do consumo pornográfico, assim como há mulheres que fingem não gostar de filmes eróticos. Em alguns casos, é resistência legítima. Em outros, não passa de tipo.
Por Haroldo Sereza, no Ópera Mundi