TARTUFOS (1) – Numa cruzada por uma nova divisão do mundo


Breves considerações sobre realidades do entorno mundial

Os acontecimentos ocorridos desde a segunda metade do século XX determinaram que o mundo recebesse o terceiro milênio com um predomínio imperialista, no qual se ressalta o crescente conflito e o manipulação de táticas de simulação em escala global, intensificados com a conjuntura criada pela atual crise ativa.

Dos desequilíbrios do século XIX; a grande depressão de 1929, os ocorridos na década de 1970 e ao final do segundo milênio, outros acontecidos no início deste século e a crise de setembro de 2008, ainda sem resolver, são as referências notórias da mutabilidade do sistema capitalista e de sua incapacidade para fixar um rumo estável que tenha como meta a prosperidade e a exaltação do ser humano.
 
As crises, derivadas das contradições próprias do sistema, desafogaram a contaminação causada pela magnitude dos processos de acumulação, a incontrolável especulação financeira, a intensidade da exploração e a desproporção na distribuição das riquezas.

Para alcançar a recuperação em cada uma destas fases críticas e preservar o modelo hegemônico de dominação, foram aplicadas doutrinas econômicas funcionais aos interesses dos mais ricos e das grandes potências, utilizando para isso o poderio militar ou o discurso ladino com que “aparentam” respeitar os princípios da soberania, da independência e da autodeterminação, enquanto que, com atos precisos estendem sua opressão sobre as nações pobres para apropriarem-se de seus recursos estratégicos, matérias primas, comércio, mercados e obter, através da opressão econômica e o controle político global.

O processo emanado da Perestróica e da Glasnost que culminou com a destruição da URSS, a queda do muro de Berlim e do sistema socialista no Leste europeu, rompeu o equilíbrio na correlação de forças, acentuando o apetite do capital e as expectativas das super potências que, com resolução e oportunismo, empreenderam a consolidação de um império que hoje conserva o centro de comando na Casa Branca e conta com a cumplicidade da Europa e das mais significativas organizações multilaterais fundadas durante o século XX.

A revitalização e a implementação do pensamento liberal incutido na maioria das nações do planeta, universalizando-se como método econômico, provocou complexas mutações sócio-políticas, econômicas e jurídicas nos Estados, sociedades e cidadãos e criou o entorno propício para a cruzada mais desumana do imperialismo.

Esta expansão do neoliberalismo em escala global responde a uma estratégia política do suprassumo imperialista, pois que se é verdade que propiciou enormes benefícios econômicos às potências mais desenvolvidas e às empresas transnacionais em detrimento dos trabalhadores e países pobres, seu corolário transcende qualquer interpretação meramente econômica.

Como teoria, o institucionalismo liberal centrou sua ação econômica na expansão do mercado, do comércio, das finanças e das corporações, ultrapassando fronteiras; no campo político diminui o poder dos Estados, cooptando sua intervenção e o controle do funcionamento de um mercado (mais libertino do que livre), enquanto que, reforçava a influência das instituições internacionais funcionais aos seus propósitos e finalmente, no plano ideológico, desatou uma sequência de operações que encurralaram os trabalhadores e a luta de classes tentando, desta forma, reverter as causas e condições pelas quais os trabalhadores são chamados a transformar a sociedade com a tomada do poder político, como precisaram Marx e Engels. ([1]

Desta forma, a era neoliberal encarregou-se de modificar as relações internacionais entre os governos, para pavimentar o caminho para a formação de uma governança tirânica desarticulando dois dos três eixos da luta de classe: o político e o ideológico, tolerando somente a luta reivindicatória na ordem econômica, desde que não desafiasse o Sistema.

Se como resultado da industrialização, a classe trabalhadora se converteu em um setor social preponderante, com a tecnologia da informação (fundamentalmente em processos produtivos) esta posição foi diminuída, circunstância que unida a outros fatores que fraturaram a uniformidade nas condições sociais, econômicas e trabalhistas, originaram divergências de interesses, perda da identidade de classe e debilidade das forças de esquerda.

A redução dramática do número de trabalhadores, determinada pelo aumento da taxa de desemprego, a desmobilização de empresas, a mobilidade geográfica e funcional, a proliferação de modalidades contratuais temporárias e a terceirização das relações trabalhistas, demonstram que os trabalhadores foram vítimas de uma escalada agressiva que mesclou métodos antigos e novos com o intuito de debilitar sua capacidade enquanto força opositora do capitalismo.

Sob a argumentação de que o excesso de regras afetava o livre funcionamento do mercado e a urgência de adaptar-se às novas condições determinadas pela globalização, o Direito do Trabalho foi atacado pelos processos de desregulamentação e flexibilização, descaracterizando seu caráter protetor e tornando inoperável sua função de estabilizador da relação jurídico-trabalhista. A partir daquele momento foi aberto espaço para outra concepção que estabelece as relações trabalhistas a partir de sujeitos iguais e livres.

Lamentavelmente, devido a esta estratégia, os trabalhadores atenuaram seu protagonismo como força influente nas dinâmicas sociais e políticas nacionais durante as duas últimas décadas do século passado.

Acoplada à ofensiva contra os trabalhadores, ocorreu a investida anti-sindical com manipulações legislativas que criaram normas mais rígidas para a constituição e a inscrição de sindicatos e o exercício dos direitos sindicais, reforçando-se o controle de suas atividades. Isto resultou na diminuição da taxa de filiação, o esgotamento e a perda da capacidade de representar os trabalhadores e melhorar suas condições de vida, acontecimentos que propiciaram fragmentações internas, conflitos de liderança, descrédito e perda da confiança ante os trabalhadores.

O imperialismo soube aproveitar habilidosamente o desalento que invadiu as forças progressistas de esquerda e o sindicalismo classista com a queda do referencial socialista soviético e do Leste europeu e o resultado de toda esta ofensiva provocou uma relativa inatividade na histórica resistência ideológica dos trabalhadores ao capitalismo, registrando-se uma letargia temporária na luta de classe e na combatividade dos sindicatos.

No cenário internacional, a paralisação sofrida pela Federação Sindical Mundial permitiu que a já vacilante resistência do movimento sindical à onda neoliberal fosse liderada pela CIOLS e a CMT, o que significou a propagação do tipo de sindicalismo que busca o entendimento entre trabalhadores e patrões para obter vantagens econômicas questionáveis que iludem a luta de classes e o enfrentamento ao sistema capitalista.

Este processo incrementou a degeneração da natureza e da essência das organizações sindicais tradicionalmente afins aos interesses do capital e transformou outras Centrais, Federações e sindicatos em organizações corporativas e clientelistas. Esta desnaturalização foi articulada, predominantemente, por uma camarilha de dirigentes burocráticos e elitistas coligados aos poderes políticos, dependentes de recursos alheios, que se distanciando de seu principal objetivo, manipularam os trabalhadores, restringindo sua capacidade de ação em troca de vantagens individuais.

Em síntese um sindicalismo que defendeu as ganâncias capitalistas a custa de pactuar ou aceitar mais horas de trabalho pelo mesmo salário, com piores condições de trabalho para “salvar” a empresa. 

Essa intenção de reverter a missão histórica dos trabalhadores tornou-se mais evidente logo após a reunificação, reorganização e atuação decisiva do sindicalismo classista no XV Congresso da Federação Sindical Mundial (FSM) realizado em dezembro de 2005 em Havana.

A reação do domínio hegemônico foi quase imediata, respondendo com um discursos e uma proposta em torno da unidade e da pluralidade para fazer frente ao neoliberalismo. A unificação das duas correntes sindicais não desafiadoras do regime socioeconômico capitalista e que atuam com finalidades exclusivamente reivindicativas, respondeu à necessidade de apaziguar o crescente conflito sócio-trabalhista, evitando as explosões sociais e a expansão de um sindicalismo dinâmico, afiançado na ação anticapitalista, capaz de conduzir a classe trabalhadora na luta para a tomada do poder político.

Táticas com similares finalidades foram empregadas no século passado. Vale citar entre elas a criação da OIT em 1919, cujas motivações humanitárias e econômicas enredaram-se com a finalidade política de prevenir levantes sociais e revoluções, que seguiram o exemplo da Rússia e o fracionamento da Federação Sindical Mundial em 1949, que surgira em 1945 como verdadeira expressão da unidade do movimento operário internacional.

A criação desta nova versão socialdemocrata-cristã, pró-capitalista, foi respaldada por uma aparatosa publicidade dos meios informativos que destacavam a representação de mais de 150 milhões de trabalhadores e o discurso anti-neoliberal que propagava seus objetivos. ([2])

Nos anos seguintes à sua fundação, no final de 2006, esse modelo foi apresentado como o único visível de “resistência”, o que contribuiu ao respaldo oferecido pelos organismos multilaterais e provenientes especialmente da Organização Internacional do Trabalho, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio.

Este conjunto de ações no cenário mundial e sua pertinaz interlocução ante os organismos internacionais aprofundam os danos ao movimento operário e aos trabalhadores, toda vez em que sua ação é centrada na defesa dos princípios e direitos fundamentais, como se isso fosse possível, sem impugnar a economia de livre mercado. Promovem também acordos com as instituições financeiras e a Organização Mundial do Comércio pretendendo ignorar sua condição de ferramentas da espoliação capitalista.

Por outro lado, reconhecem no diálogo social o instrumento idôneo para amortizar as discrepâncias entre trabalhadores e patrões, superar as desigualdades e alcançar a justiça social procurando frear a luta de classes.

Isto esclarece o falso postulado da perda da ideologia na luta operária para alcançar a unidade e deixa clara a finalidade de restringir o protesto operário, monitorando e controlando, a partir de um domínio central global, seu funcionamento e a ação sindical nas nações.

Lênin, em “O imperialismo, fase superior do capitalismo” – cita o seguinte:

“….A resposta do proletariado à política econômica do capital financeiro, ao imperialismo, não pode ser o livre comércio, mas apenas o socialismo…”.([3])

As críticas e denúncias que sistematicamente são divulgadas por aqueles que integram o pensamento sindical, que nega a transformação radical da sociedade sobre a situação em que vivem milhões de seres humanos neste planeta, são corretas e focadas em problemas mais graves, porém, há por acaso alternativa de negar uma realidade tão evidente e crua?

Se for certo que esta corrente sindical prevalece na atualidade, é evidente que os enfoques e a atividade da Federação Sindical Mundial motivam, cada vez mais, os trabalhadores estimulados por discursos que afirmam propostas conciliadoras e tolerantes que afetam seus interesses vitais.

Esta afirmação pode ser demonstrada pelo crescimento, em termos de filiação e da unidade de ação, que a FSM realiza junto às centrais sindicais independentes e às organizações de base orientadas por dirigentes que defendem os interesses dos trabalhadores com tenacidade e honradez, e que foram incorporadas à confederação por decisões das elites burocráticas, por manobras estatutárias ou passando por cima dos fortes debates suscitados.

O programa de luta da Federação Sindical Mundial se articula sobre os três pilares da estrutura social: a econômica, a ideológica e a política, por conseguinte se identifica com os interesses dos trabalhadores, reconhece o caráter irreconciliável das contradições com o capital e defende e impulsiona a luta de classe pelas reivindicações de direitos, pela emancipação social e econômica da exploração e pela tomada do poder político.

Ainda que os desafios para enfrentar o futuro próximo sejam difíceis e complexos e o cenário global adverso, o espaço recuperado ao concluir esta primeira década do século XXI favorece o crescimento de sua atividade centrada na conquista de uma unidade verdadeira dos trabalhadores e seus sindicatos, com consciência de classe.

Neste esforço, é inadiável superar divisões sem substância, conflitos de poderes e a pueril burocracia aplicando formas de organização e estruturas funcionais, adaptadas às condições do entorno social e trabalhista que respeitem os princípios de representatividade e a democracia participativa, de forma tal que os dirigentes não possam atuar ao seu livre arbítrio, nas costas seus filiados.

A fragmentação herdada do período neoliberal impõe a necessidade de integrar as lutas divididas que se expressam nos âmbitos social, trabalhista, ambiental e político. Os trabalhadores organizados devem unificar e orientar toda a batalha que projete a transformação da sociedade.

É preciso também que a solidariedade e a condenação entrelacem-se com programas de ação unitários nos quais o internacionalismo operário, as greves solidárias, os boicotes globais ao consumo e as jornadas de protestos em conjunto ponham em xeque a ambição e a crueldade das empresas transnacionais e a falsidade da elite governante mundial representada pelo G-8 (grupo que não foi dissolvido ou anulado com a adesão de economias emergentes selecionadas com forme sua conveniência).

O movimento sindical classista demanda conhecer, compreender e visualizar as perspectivas reais que emergem no que Lênin anunciou como “a fase superior do capitalismo”, ou talvez a última fase do imperialismo, encarnada em uma sinistra “globalização neofascista”. ([4])

Para superar estes fatos e outros diretamente associados, como a formação e a capacitação de dirigentes sindicais, é preciso uma plataforma de ação sustentada nas teses marxistas, que avalie o cenário internacional e feitos do imperialismo do século XXI, suas tendências, mobilizações e metas.

Para isso se faz necessário unificar e divulgar o pensamento revolucionário que emerge nestes tempos. Esse pensamento econômico, filosófico, político e sociológico que seguramente nunca será merecedor de prêmios Nobel, ([5]) contribuirá pra a concepção de estratégias de luta fundamentadas cientificamente, que lêem os povos à sua definitiva redenção do poder imperialista.

Com a elaboração destas reflexões sob o título “Tartufos em cruzada por uma nova divisão do mundo”, se pretende convocar o movimento sindical classista, em especial da América Latina a impulsionar, com obra do pensamento, a cruzada pelo desmascaramento frontal da falsidade, da manipulação e do reformismo pseudo-esquerdista indulgente e infiltrado no movimento sindical.

Esta é uma tarefa inadiável na luta contra um imperialismo voraz destruidor da vida humana e do planeta.

Resistir / com sentido de vida / para que não o quebrem, / nem moral / nem espiritualmente. / Resistir / para evitar / que te anulem a consciência / e te submetam. / Essa é / a pior das prisões, / a fissura / que te leva / à perda de / tua identidade / onde / se deixa de ser pessoa / para ser objeto / e submeter-se / ao sistema de opressão.”

Adolfo Pérez Esquivel. ([6])

Cidade de Havana, 20 de janeiro de 2010.

Martha Martínez Navarro é assessora da FSM América


[1] A burguesia, segundo descrevem Marx e Engels no Manifesto Comunista, não só forjara as armas que a significariam sua morte como classe social; mas também engendrara seus próprios coveiros: os trabalhadores modernos, os proletários e os que alcançariam a tomada de consciência e o combate unido contra o mal que lhes oprimia.

[2] Atualmente, a organização se declara representativa de 170 milhões de trabalhadores e trabalhadoras em 157 países e 306 organizações afiliadas.

[3] O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, Vladimir Ilich Lênin. Editora Política, Havana, 1963, página 127.

[4] O Dr. Julio Fernández Bulté, professor de Mérito da Universidade Havana, e prestigiado filósofo marxista, refere-se em um Artigo intitulado Fascismo e Neofascismo “Agora vemos com estupor como Bush manipula os setores conservadores da sociedade norte-americana, apoiando-se nos grandes consórcios financeiro-militares, levanta uma consciência de superioridade social dentro das forças armadas e seus falcões mais agressivos e inicia uma guerra que não parece ter FM e que só pode conduzir a uma tirania mundial de caráter fascista”. Em suas reflexões reafirma a necessidade de construir uma barreira ideológica e política contra as forças neofascistas donas dos principais mecanismos de poder nos Estados Unidos.

[5] Historicamente os Prêmios Nobel são outorgados a representantes do pensamento liberal. Entre eles F. A. Hayek , George Stigler e Milton Friedman. Os representantes da Escola de Chicago receberam 70 prêmios, dentre eles 20 em economia.

[6] “Uma gota de Tempo. Crônica entre a angústia e a esperança”. Livro autobiográfico de Adolfo P. Esquivel, 1996.

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