O trabalho precário sob um ponto de vista feminino

O trabalho precário é um conceito central nas discussões do movimento sobre a reorganização capitalista do trabalho e as relações de classe na economia global atual. Silvia Federici analisa os limites e o potencial desse conceito, entendido como uma ferramenta analítica e organizativa. Sustenta que o trabalho reprodutivo é um continente oculto do trabalho e da luta que o movimento tem que reconhecer em sua tarefa política, se deseja enfrentar as questões centrais que surgem quando se pensa uma alternativa à sociedade capitalista.

Como lidar com o trabalho reprodutivo sem destruir a nós e as nossas comunidades? Como criar um movimento que se autorreproduza? Como superar as hierarquias raciais, etárias e sexuais construídas como base salarial? Esses e outros pontos fazem parte da conferência proferida por Silvia Federici e reproduzida abaixo, dentro de uma série chamada “This is Forever: From Inquiry to Refusal Discussion Series”.

O trabalho precário sob um ponto de vista feminino

Esta noite vou criticar a teoria do trabalho precário, tal como a vêm desenvolvendo alguns marxistas italianos, particularmente Antonio Negri, Paolo Virno e também Michael Hardt. Falo de “teoria” porque as ideias que Negri e outros vêm articulando há tempos vão mais além de uma mera descrição das mudanças na organização do trabalho ocorridas nos anos 80 e 90, a partir de um processo de globalização que trouxe consigo a precarização do trabalho, relações trabalhistas crescentemente descontínuas, a introdução do “tempo flexível” e uma paulatina fragmentação da experiência trabalhista. A opinião desses autores sobre o trabalho precário está marcada por uma determinada perspectiva de conjunto sobre a natureza do capitalismo e dos conflitos de nossos dias. E há que se dizer que não se trata aqui de simples ideias que povoam as cabeças de um punhado de intelectuais, mas sim de teorias que circulam há anos dentro do movimento italiano, e que também têm influência nos Estados Unidos. São, assim, teorias que em nossa opinião possuem relevância.

História e origem do trabalho precário e da teoria do trabalho imaterial

Minha premissa inicial é a seguinte: não há dúvida de que o problema do trabalho precário deve estar em nossa agenda. E não se trata simplesmente de que nossas relações com o trabalho assalariado sejam agora mais descontínuas, mas também de que a discussão sobre o trabalho precário é crucial para entender como podemos superar o capitalismo. As teorias que discuto captam aspectos importantes das mudanças que tiveram lugar na organização do trabalho, é certo; mas também nos trazem de volta a uma concepção machista do trabalho e da luta social. Discutirei agora os aspectos que resultam mais pertinentes dessa teoria.

Um detalhe importante da teoria autonomista italiana sobre o trabalho precário é que a precarização trabalhista — desde o final dos anos 70 até o presente — foi a resposta capitalista às lutas de classe dos anos 60, uma luta centrada no rechaço do trabalho, tal e como se dizia na velha frase “mais dinheiro e menos trabalho”. Foi uma réplica a um ciclo de lutas que punham em xeque o controle capitalista do trabalho, um rechaço da disciplina capitalista laboral por parte dos trabalhadores, o repúdio de uma vida organizada em função das necessidades da produção capitalista, de uma vida consumida na fábrica ou oficina.

Outro tema importante é que a precarização das relações trabalhistas tem suas raízes uma troca do trabalho industrial por um outro trabalho, que Negri e Virno denominam “imaterial”. Eles argumentam que a reestruturação da produção dos anos 80 e 90, entendida como resposta às lutas dos 60, produziu um processo em que o trabalho industrial foi substituído por um tipo diferente, da mesma forma como esse mesmo trabalho industrial havia substituído ao trabalho na agricultura. Esse tipo de trabalho “imaterial” seria pois a revolução da computação e da informática. No mundo capitalista de hoje, a tendência principal se orientaria para uma forma dominante de trabalho que não produziria objetos físicos, mas sim informações, ideias, estados de coisas, relações.

Em outras palavras: o trabalho industrial — hegemônico nas fases prévias do capitalismo — já não é tão importante, já não é o motor do desenvolvimento capitalista. Em seu lugar encontramos “trabalho imaterial”, cultura, cognitivo e trabalho “info”.

A precarização do trabalho seria consequência das novas formas de produção. É provável que o ponto de virada até o trabalho imaterial gere precarização das relações trabalhistas porque a estrutura de trabalho intelectual é diferente do trabalho industrial, do trabalho físico. O trabalho intelectual e da informação descansa menos na presença física contínua do trabalhador tradicional. O ritmo de trabalho é muito mais intermitente, fluido e descontínuo.

Em síntese, o desenvolvimento do trabalho precário e o desvio do trabalho intelectual não aparecem — aos olhos de Negri e outros autonomistas marxistas — como um fenômeno completamente negativo. Ao contrário, são vistos como expressão de uma tendência até a redução do trabalho e, por isso mesmo, da exploração: como o resultado de um desenvolvimento capitalista que responde ao conflito de classe.

Isso significaria, hoje, que o desenvolvimento das forças produtivas nos permitiria vislumbrar um mundo capaz de transcender ao trabalho; um mundo no qual nos liberaríamos da necessidade de trabalhar, uma via que conduz ao reino da liberdade.

Os marxistas autonomistas creem que este desenvolvimento também está criando uma nova forma de “bens comuns”, pois lhes parece possível que o trabalho imaterial represente um salto adiante na socialização e homogeneização do trabalho.

É relativamente simples averiguar por que essas teorias se fizeram populares. Elas contêm elementos utópicos especialmente atrativos para os trabalhadores cognitivos. Em vez de classe operária, aparece a ideia de que dentro do processo de trabalho os trabalhadores são cada dia mais homogêneos, pois todas as formas de trabalho incorporam trabalho cognitivo, computacional, comunicacional e assim sucessivamente.

Como eu disse, essa teoria alcançou um alto grau de popularidade porque há uma geração de ativistas jovens que agora estão empregados em trabalhos precários nos distintos ramos da indústria cultural ou na indústria de produção de conhecimento. E entre eles essas teorias são muito populares, porque lhes sugerem que apesar da miséria e exploração que experimentam, isso os move até um nível mais alto de produção e de relações sociais. É uma geração de trabalhadores que considera o horário de trabalho das “9h às 17h” uma regra carcerária. Para eles a precariedade lhes outorga novas possibilidades que seus padres não tiveram, mas sonharam. O rapaz de hoje, por exemplo, não é tão disciplinado como foram seus pais; e estes pais ainda eram capazes de esperar que sua esposa ou companheira fosse economicamente dependente deles. Agora eles contam com relações sociais que supõem menor dependência financeira.

Crítica do trabalho precário e de sua apologia indireta

A partir daqui farei uma crítica dessas teorias, a partir de um ponto de vista feminista. Não é que ao expor minha crítica eu queira minimizar a importância dessas teorias. Não quero minimizar o valor do trabalho que se realiza em relação ao temas da precariedade. É evidente que na última década assistimos a um novo tipo de luta. Onde estava o posto de trabalho na fábrica ou na oficina agora vemos um novo tipo de lutas que contesta diferentes lugares de trabalho, construindo movimentos e organizações arraigadas a um território. As teorias do trabalho precário tentam dar conta das novidades na organização do trabalho e de luta, e também pretendem entender as formas emergentes de organização.

Minha primeira crítica é que essa teoria se constrói sustentada em uma concepção completamente equivocada sobre o modo em que opera o capitalismo. Meu ponto de vista é que tudo isso não é nada menos do que um penoso mal entendido sobre os efeitos da reestruturação induzida pela globalização capitalista e o giro neoliberal.

O que Negri e Hardt não advertem é que o tremendo custo do salto tecnológico necessário para a informatização e a integração no processo de trabalho se pagou às custas de um gigantesco crescimento da exploração no outro extremo desse processo. Existe um fio de continuidade entre o trabalhador da computação e o trabalhador do Congo que extrai o algodão com suas próprias mãos para sobreviver, antes de ser expropriados e pauperizados pelos repetidos ajustes estruturais ou dos constantes roubos de terras e recursos naturais comunitários.

O princípio fundamental é que o desenvolvimento capitalista é, sempre e ao mesmo tempo, um processo de subdesenvolvimento. Essas teorias ignoram por completo esse vínculo crucial, porque estão de todas as partes penetradas pela ilusão de que o processo do trabalho está nos unindo. Essas teorias não percebem que a reestruturação da produção tem como objetivo reformar e aprofundar as divisões dentro da classe trabalhadora, ao invés de apagá-las.

Uma de minhas críticas aos dois autores é que eles parecem crer que a organização capitalista do trabalho é a expressão de uma racionalidade mais elevada, e que o desenvolvimento capitalista é necessário para criar as condições necessárias para o comunismo. Essa crença é central em sua teoria do trabalho precário. Podemos discutir se essa crença representa ou não o pensamento de Marx. Mas não é certo que esse seja um tema dominante no trabalho de Marx, e logo em “O Capital”.

Trabalho precário e trabalho reprodutivo

Outra de minhas objeções à teoria do trabalho precário é que ela se apresenta como neutra ante o tema do gênero. Assume, sem mais, que a reorganização da produção está eliminando as relações de dominação e as hierarquias que existem dentro da classe trabalhadora em função da raça, sexo e idade. Ou seja, não se ocupa de tratar essas relações de poder e carece das ferramentas teóricas e políticas para pensar como abordá-las.

Obviamente isso se trata de uma ilusão. Algumas feministas assinalam que o trabalho precário não é um fenômeno novo. As mulheres sempre tiveram uma relação precária com o trabalho assalariado. Mas a crítica vai muito mais além.

Preocupa-me que a teoria negriana do trabalho precário ignore e passe por alto uma das contribuições mais decisivas da teoria e da luta feministas: a redefinição do trabalho o reconhecimento de que o trabalho reprodutivo não pago é um recurso fundamental da acumulação capitalista. Ao redefinir o trabalho doméstico como trabalho, e não como um serviço pessoal; ao defini-lo como um trabalho que produz e reproduz a força de trabalho, as feministas descobriram um novo e profundo modo de exploração que Marx e a teoria marxista passaram praticamente pelo alto.

Há um eco imperceptível das análises feministas na teoria, quando se inclui o “trabalho afetivo” dentro das atividades trabalhistas qualificadas como “trabalho imaterial”. No entanto, o máximo que chegam a reconhecer é o caso do trabalho das comissárias de bordo ou das responsáveis pela comida nas empresas: as chamadas trabalhadoras “afetivas”, porque supõe-se que elas devam sorrir a seus clientes.

Mas o que esse trabalho afetivo? E por que incluí-lo na categoria de trabalho imaterial? Imagino que o incluem porque não produzem produtos tangíveis, mas sim “estados afetivos”, isto é, sentimentos. Esse conceito faz com que evapore o poder desmitificar da análise feminista do trabalho doméstico.

A análise feminista da função da divisão sexual do trabalho, da função das hierarquias de gênero, do modo como o capitalismo tem usado o salário para mobilizar o trabalho feminino de reprodução de força de trabalho — tudo isso se evapora sob a etiqueta de “trabalho afetivo”.

O desinteresse dessa teoria pelo trabalho reprodutivo e sua presunção de que todo trabalho é comum esconde o fato de que ocupam dos setores mais privilegiados da classe trabalhadora. E isso significa que não é uma teoria que possamos usar para construir um movimento que se autorreproduza de maneira verdadeira.

Para essa tarefa ainda hoje é crucial a lição do movimento feminista. Nos anos 70 o feminismo tentou entender as raízes da opressão e da exploração das mulheres e as hierarquias de gênero. As feministas descrevem tais fenômenos como produto de uma desigual divisão de trabalho, que força as mulheres a trabalhar para a reprodução da classe trabalhadora. Essa ideia foi decisiva para uma crítica social radical, e suas conseqüências ainda precisam ser entendidas e desenvolvidas em todo seu potencial.

Quando nós, mulheres, dizemos que o trabalho doméstico é um verdadeiro trabalho para o capital, estamos dizendo algo importantíssimo sobre a natureza do capitalismo como sistema de produção. Afirmamos que o capitalismo se constrói sobre uma imensa soma de trabalho não pago, e que não sustenta exclusiva ou primariamente em relações contratuais. Também dizemos que a relação salarial oculta o trabalho não pago e escravo, tal e como é a natureza de grande parte do trabalho que torna possível a acumulação do capital.

Como lutamos contra o trabalho reprodutivo? Não é o mesmo que lutar em um posto de trabalho na fábrica, porque do outro lado da luta há pessoas e não coisas. Uma vez que dissemos que o trabalho reprodutivo é um âmbito de luta, de imediato devemos nos perguntar como lutar nesse terreno sem destruir as pessoas que estão em nosso cargo. Esse é o problema que conhecem a fundo as mães, professoras e enfermeiras.

Por isso é tão importante poder traçar uma separação entre a criação de seres humanos e a reprodução dos mesmos, entendidos como força de trabalho, como futuros trabalhadores que, por isso mesmo, necessitam ser treinados e não necessariamente em função de suas necessidades e desejos.

Uma vez percebido que ao invés de reproduzir a vida estamos expandindo a acumulação capitalista e que começamos a definir o trabalho reprodutivo como um trabalho para o capital, também abrimos a possibilidade de um processo de recomposição das relações entre as mulheres.

Por exemplo, pensemos no movimento das prostitutas, a quem agora chamamos movimento das “trabalhadoras do sexo”. As origens desse movimento na Europa remontam a 1975, quando um grupo de trabalhadoras do sexo ocupou em Paris uma igreja como forma de protesto contra uma nova regulação por zonas, visto por elas como um ataque a sua segurança. Houve uma clara reação entre sua luta — que logo se propagou com toda a Europa e Estados Unidos — e o movimento feminista que estava voltando  a pensar e questionar o trabalho doméstico.

Para concluir, foi um avanço importante que as mulheres tenham podido começar a entender o trabalho não pago e a produção que se realiza dentro e fora do lugar como a reprodução da força de trabalho. Isso permitiu repensar cada aspecto da vida cotidiana, em função da exploração e da acumulação capitalista.

Para criar um movimento que se autorreproduza

Na medida em que formos capazes de pensar que qualquer aspecto da vida cotidiana é potencialmente liberador ou explorador, também podemos nos dar conta das distintas maneiras nas quais se unem as mulheres e suas lutas de gênero. Descobrimos a possibilidade de “alianças” que não havíamos imaginado e a possibilidade de superar as divisões que se haviam criado entre as mulheres, também sobre a base da idade, raça e preferência sexual.

Não podemos construir um movimento sustentável sem entender essas relações de poder. Também precisamos aprender várias coisas das análises feministas do trabalho reprodutivo, porque nenhum movimento pode sobreviver a menos que se interesse pela reprodução de seus membros. Essa é uma das debilidades do movimento por justiça social dos Estados Unidos.

Assistimos às manifestações, organizamos atos e isso é o máximo que fazemos por nossa luta. Mas a análise sobre como é possível reproduzir o movimento e reproduzirmos a nós mesmas não está no centro da organização do próprio movimento. É preciso que voltemos à tradição histórica da classe trabalhadora e organizemos uma “ajuda mútua”, de modo a voltarmos a pensar tal experiência, não necessariamente para ressuscitá-la, mas sim para nos nutrirmos no presente.

É preciso construir um movimento que inclua em sua agenda as condições para sua própria reprodução. É necessário que a luta anticapitalista invente distintas alternativas e seja capaz de construir suas próprias vias de reprodução de maneira coletiva.

Artigo originalmente escrito em italiano, traduzido do espanhol por Fernando Damasceno e reproduzido do Rebelión.org


Silvia Federici é pesquisadora, historiadora marxista e feminista, autora do aclamado livro “Caliban and the Witch: Women, The Body And Primitive Accumulation” (Nueva York, Autonomedia, 2004) e é professora em várias universidades norte-americanas.

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