Marx, Darwin e a ampliação do saber

 

Gigantes do pensamento do século XIX, Karl Marx e Charles Darwin ainda hoje influenciam o modo como analisamos o mundo. Ambos tinham compromissos de classe diferenciados. Marx abraçou a causa socialista e a luta do proletariado. Darwin, integrante da classe dominante inglesa, abastado, investidor em ferrovias, convivendo com o clero e com a aristocracia, evitava os debates políticos públicos. Os dois se respeitavam, contudo, como cientistas que desejavam “sinceramente a ampliação do saber e, a longo prazo, é certo que isso contribuirá para a felicidade da humanidade”, como escreveu Darwin na sua única carta conhecida endereçada a Marx.

Marx leu A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1860, um ano após a publicação. Em dezembro, escreveu a seu amigo Friedrich Engels que o livro continha “a base de história natural para nossa visão” – a teoria do materialismo dialético –, que tinha desfeito a teologia, mas que fora escrito à “maneira inglesa crua de apresentação”. No ano seguinte, comentou com Ferdinand Lassalle, outro socialista alemão, que “o livro de Darwin é muito importante e me serve de base, na ciência natural, para a luta de classes na história”. Meses depois, em nova carta a Engels, registra uma crítica dessa obra de Darwin, tendo como pressuposto a sociedade vitoriana: “É notável como Darwin reconhece entre animais e plantas sua sociedade inglesa com sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’ malthusiana. É o ‘bellum omnium contra ommnes’ (guerra de todos contra todos) de Hobbes, e lembra a Fenomenologia de Hegel onde a sociedade civil é descrita como um ‘reino animal e espiritual’, enquanto em Darwin o reino animal figura como sociedade civil”.

Em carta a Ludwig Kugelman, de 1866, Marx comenta que “em Darwin o progresso é meramente acidental e A Origem das Espécies não rendeu muito “em relação à história e à política”, embora pudesse ter “uma tendência socialista inconsciente”. Considera, porém, que tem “fraqueza de pensamento” quem queira fazer a história humana depender da expressão darwiniana de “luta pela sobrevivência”.

O pensamento econômico que Darwin esposava era o de Malthus (para quem o excesso populacional era a causa de todos os males da sociedade). No Anti-Dühring, Engels aborda a influência do malthusianismo no naturalista: “Darwin não sonhou sequer em dizer que a origem da ideia da luta pela existência era a teoria de Malthus. O que ele diz é que a sua teoria da luta pela existência é a teoria de Malthus aplicada a todo mundo vegetal e animal. Por maior que fosse o deslize cometido por Darwin de aceitar, na sua ingenuidade, a teoria malthusiana, vê-se logo, a um primeiro exame, que, para se perceber a luta pela existência na natureza – que aparece na contradição entre a multidão inumerável de germes engendrados pela natureza, em sua prodigalidade, e o pequeno número desses germes que podem chegar à maturidade, contradição que, de fato, se resolve em grande parte numa luta, às vezes extremamente cruel, pela existência – não há necessidade das lunetas de Malthus. E, assim como a lei que rege o salário conservou o seu valor muito tempo depois de estarem caducos os argumentos malthusianos sobre os quais Ricardo” (David Ricardo, 1772-1823, inglês, um dos fundadores da ciência econômica – CP) “a baseava, a luta pela existência pode igualmente ter lugar na natureza sem nenhuma interpretação malthusiana. De resto, os organismos da natureza têm, também eles, as suas leis de população, que estão pouco estudadas, mas cuja descoberta será de importância capital para a teoria do desenvolvimento das espécies. E quem, senão Darwin, deu o impulso decisivo nessa direção?”

Em 1873, Marx enviou a Darwin, “da parte de seu sincero admirador”, um exemplar de O Capital, com uma referência ao efeito “memorável” da Origem. Darwin leu apenas algumas páginas do livro, mas respondeu: “Agradeço-lhe por ter-me honrado com a remessa de sua grande obra sobre o capital, e, de todo o coração, gostaria de ser mais digno de recebê-la, tendo uma compreensão melhor do tema profundo e importante da economia política. Conquanto nossos estudos tenham sido muito diferentes, creio que ambos desejamos sinceramente a ampliação do saber e, a longo prazo, é certo que isso contribuirá para a felicidade da humanidade”.

Ao contrário do que escreveram alguns biógrafos, inclusive Isaac Berlin, Marx nunca esteve para dedicar O Capital a Darwin. A confusão aconteceu porque Darwin enviou carta a Edward B. Aveling (que depois seria genro de Marx) recusando a dedicatória que este, Aveling, faria para ele no folheto Darwin para estudantes, de 1881.

A teoria da evolução apresentada por Darwin, como toda teoria científica viva, é complementada a aperfeiçoada a cada nova descoberta possibilitada pelos avanços técnicos e científicos. Segundo Martin Gardner, “a moderna teoria da evolução abrange a genética e todas as outras descobertas importantes da ciência do século XX. Darwin foi um lamarckista que aceitou a hoje abandonada ideia da herança dos traços adquiridos.”

Avanços e recuos da compreensão do mundo e da luta de classes levaram a que, no século passado, o marxismo deixasse de ser referência para muitos cientistas. Isso se refletiu nos que continuaram na trilha aberta por Darwin de compreensão da natureza, sem a correspondência com a compreensão das vicissitudes da história social. Mesmo pensadores progressistas e envolvidos nos debates dos grandes temas do momento, como o darwinista Richard Dawkins, tratam a conduta moral do homem (sua religiosidade, inclusive) como um aspecto da conduta natural, biológica. Desconsideram as classes sociais e a luta e relações que elas travam entre si. As qualidades e defeitos morais seriam instintivos, encontrados tanto nos humanos como nos animais. Aliás, Darwin chegou a escrever que os animais experimentam quase todos os sentimentos dos homens, como amor, lealdade etc. Quando muito, esses cientistas, tratam do enfrentamento entre o racionalismo (ciência) e anti-racionalismo (religião, crenças, preconceitos etc.) na sociedade.

Esta concepção tem a “fraqueza de pensamento” apontada pelo pensador alemão. Para os materialistas dialéticos e históricos, o homem é criador e transformador da natureza, conhece e conquista a sua própria natureza e transforma a realidade que o cerca. Por isso, a indicação de Marx de apropriar-se das descobertas de Darwin “para a nossa visão”. Daí a compreensão de conjunto apontada por Engels, no discurso diante do túmulo de Marx, em 1883: “Assim como Darwin descobriu a lei da evolução na natureza humana, Marx descobriu a lei da evolução na história humana”.

Carlos Pompe é jornalista

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