Judeus, islâmicos, cristãos, budistas não encontrarão a felicidade na terra construindo Estados de suas seitas (como foi a criação de Israel no século passado), mas, como os demais integrantes da humanidade, livrando-se do ópio religioso e criando uma sociedade sem classes e com base científica. É este o pensamento que Karl Marx começa a construir nos seus textos de juventude.
A Crítica da filosofia do Direito de Hegel – Introdução foi publicada por Marx em março de 1844 na mesma edição única dos Anais Franco-Alemães em que publicou Sobre a questão judaica. Se naquele texto (abordado nesta coluna na semana passada) Marx já se referia ao judaísmo como uma religião entre outras, fruto da história humana, na Introdução, escrita após o texto sobre o judaísmo, Marx defende o fim de toda a religião. Após afirmar que “a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica”, faz estas considerações que contêm algumas de suas frases mais divulgadas (e combatidas):
“O homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurara um ser sobre-humano, encontrou apenas o seu próprio reflexo, já não será tentado a encontrar a aparência de si mesmo – apenas o não-humano – onde procura e deve procurar a sua autêntica realidade.
É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. (A religião CP) É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.
A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.
A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real”.
Neste texto Marx também, pela primeira vez, expressa sua adesão ao comunismo como a sociedade que tornará humana a existência do homem neste vale de lágrimas. E afirma a necessidade de alterações nas relações sociais a partir da ação de “uma classe determinada”. Refere-se à Alemanha, mas no Manifesto do Partido Comunista, que escreverá com Engels em 1847, estenderá esta conclusão para todas as sociedades capitalistas:
“… uma classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua caráter universal porque os seus sofrimentos são universais e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano; de uma esfera que não se oponha a consequências particulares, mas que se oponha totalmente aos pressupostos do sistema político alemão; por fim, de uma esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade sem emancipá-las a todas – o que é, em suma, a perda total da humanidade, portanto, só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado.
Na Alemanha, o proletariado está apenas começando a se formar, como resultado do movimento industrial; pois o que constitui o proletariado não e a pobreza naturalmente existente, mas a pobreza produzida artificialmente, não é a massa do povo mecanicamente oprimida pelo peso da sociedade, mas a massa que provém da desintegração aguda da sociedade e, acima de tudo, da desintegração da classe média. Desnecessário se torna dizer, contudo, que os números do proletariado foram também engrossados pelas vítimas da pobreza natural e da servidão germano-cristã”.
Esta é a primeira conceituação do proletariado na obra de Karl Marx.
Essas palavras só encontrariam eco dezenas de anos depois de escritas. Os reacionários estavam atentos ao que Marx produzia. O Ministério do Interior prussiano considerou que os textos dos Anais constituíam, “tanto pela sua tendência como suas numerosas passagens, um crime de alta traição e de lesa-majestade”. A polícia austríaca considerou que a publicação “ultrapassa tudo o que a imprensa revolucionária tinha até então produzido” devido ao seu conteúdo “escandaloso e repugnante”. Cem exemplares foram apreendidos em um vapor que transitava no Reno, 214 na fronteira entre a França e o Palatinado.
Voltando-se para esse período de sua formação e produção, Marx escreverá na introdução ao livro Para a crítica da economia política que suas investigações chegaram “ao resultado de que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas sim assentam, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo conjunto Hegel resume, seguindo o precedente dos ingleses e franceses do século XVIII, sob o nome de ‘sociedade civil’, e que a anatomia da sociedade civil deve ser buscada na Economia Política”.
E é a essa anatomia, ao estudo da Economia Política e à análise do capitalismo, que ele voltará suas atenções, visando municiar o proletariado com a arma da crítica para melhor travar a crítica das armas ao capitalismo.
Carlos Pompe é jornalista