A sofisticação dos 411 artigos da nova Constituição boliviana tem chamado a atenção do mundo em sua proposta de fundação de um Estado plurinacional, mas os efeitos da radicalização na política boliviana não deixam de se fazer sentir na parca divulgação de informações pela imprensa sobre as mudanças efetivas que traz a nova Carta.
Enquanto a direita difundiu suspeitas e boatos sobre os possíveis desdobramentos da nova Constituição – como as de que ela abre brecha para a legalização do aborto no país, ou que ameaça a propriedade privada -, os partidários do governo se ampararam na popularidade da figura do presidente para assegurar os votos necessários no referendo.
O discurso da engraxate Luci, que atua na Praza 14 de Setembro, a principal de Cochabamba, é exemplar dos eleitores que votaram pelo "sim" no referendo. Questionada sobre as razões de seu voto, ela se refere imediatamente ao presidente. "Ele se preocupa com as crianças e os velhos, fez o bônus Juancito Pinto e o Renda Dignidade", diz, lembrando dois programas de transferência de renda que estão entre as principais bandeiras do governo – justamente, o palco inflável em que se comemorou a vitoria do "sim" no domingo à noite em Cochabamba estampava referências às mesmas políticas públicas. Pergunto a Luci, logo a seguir, sobre a nova Constituição pela qual ela votou: "Sobre isso, não posso dizer nada, porque não entendo dessas coisas".
Outro cochabambino que votou pelo "sim", o ativista Ramiro Saravia reconhece e se preocupa com essa situação. Organizador de diversas mobilizações populares na cidade, com a Red Tinku, e veterano da Guerra da Água (2000), ele votou com convicção: "A nova Constituição é parte importante do processo de mudança que está acontecendo". Para ele, é "normal" na Bolívia que os meios de comunicação se neguem a aprofundar o debate político. "As pessoas têm simpatia por Evo, mas pouco conhecimento do processo como um todo".
"Falta trabalho de base do MAS (partido do governo) e dos movimentos sociais", continua ele. "O resultado é que há uma debilidade do processo. Sem entender o que está acontecendo, essas pessoas podem mudar de lado de uma hora para outra no futuro."
Por essa razão é que Ramiro se preocupa com a provável diminuição dos percentuais de apoio ao governo no referendo, comparando-se com os resultados da votação anterior, de agosto, que ratificou o mandato de Evo. "Trata-se de um sintoma dessa debilidade", diz ele, que, apesar das críticas, organizou na segunda-feira pela manha uma marcha de comemoração pela vitória do sim em torno da praça central da cidade, tradicional ponto de manifestações políticas.
No ânimo do carpinteiro Felix Vargas, de Cochabamba, transparece o momento de inflexão, a pressão pelos resultados concretos do "processo de câmbio". Encontro-o numa tenda que vende comida na saída de um colégio da cidade, logo apos ter votado em branco no referendo – em 2005, ele foi eleitor de Evo, conta, mas agora está desanimado. "Falta trabalho, falta dinheiro em circulação. Os salários são baixos", reclama.
O diagnóstico mais original vem do ativista Calizaya, do Movimento Andres Tupac Amaru, que também encontramos na segunda-feira pela manhã na praça central de Cochabamba, no centro de uma animada roda que discutia o cenário atual da política no país. De um modo geral, ele apóia as mudanças, mas acredita que há uma "espanholização" desnecessária do processo. "A Constituição segue sendo a mesma da direita, mas em mãos esquerdas", diz ele, que acredita que a saída é a recuperação das tradições pré-colombianas de organização política. "A liberação virá quando nos encontramos com nos mesmos", afirma, lembrando que a Bolívia originalmente era um dos quatro suyos que formavam o império Inca. Mas se resigna: "Mesmo que a maioria esteja equivocada, não pode ir contra seus irmãos".
Mas, se, para alguns, o processo poderia ser aprofundado, para outros, o que está acontecendo já é uma revolução, como se entrevê nas palavras do agroempresario Juan Clavres, outro que encontramos na saída de um local de votação. Ele, que votou pelo "não", acredita que os atuais governos de Bolívia, Argentina, Venezuela e Brasil estão mancomunados para criar um Estado socialista na América do Sul, nos moldes cubanos. "Uma terra sem ricos nem pobres, já imaginou? Como se pode pensar que vou trabalhar a vida toda e ter de dividir com algum sem-vergonha que nunca se esforçou?"
A ameaça se materializa no novo texto constitucional, que define os recursos naturais como bens de todos e de caráter estratégico. Embora ainda não haja clareza no país sobre como esses princípios serão aplicados (haverá ainda muitos debates no Congresso), Juan está certo de que o pouco que tem em sua propriedade, onde planta pêssegos, no qual investiu 7 mil dólares, terá de ser compartilhado com os vizinhos. Essa é a razão de sua revolta.
No final da conversa, Juan pergunta aos dois outros observadores estrangeiros que acompanhavam a conversa sobre sua nacionalidade e se diz contente por saber que eram franceses, de Marselha: "Vocês nos deram o hino mais bonito do mundo, depois do boliviano, a Marselhesa". Talvez resida aí uma explicação para o grande choque da parte mais rica da população com as inovações políticas atuais. O que se aprovou domingo na Bolívia foi justamente uma Constituição plurinacional e intercultural, que relativiza valores solidamente instalados na sociedade ocidental nos últimos dois séculos, desde a Revolução Francesa.
Tradução reproduzida da Agência Carta Maior