Durante pesquisas em arquivos e escaninhos da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o antropólogo e professor Roberto Albergaria localizou um desses papéis reveladores. Trata-se de informe "confidencial" elaborado pela 2ª Seção – setor de inteligência – da 6ª Região Militar (Bahia e Sergipe).
De contornos freudianos, as quatro folhas expõem a construção mental dos estudantes subversivos. O informe datilografado, com carimbos do Exército, repousou nas mesas do reitor da Ufba e da AESI (Assessoria Especial de Segurança e Informação), braço do SNI (Serviço Nacional de Informações) na universidade. Terra Magazine o publica na íntegra, com exclusividade.
Datado de 20 de dezembro de 1974, o ofício foi enviado, concomitantemente, ao CIE (Centro de Informações do Exército) e ao IV Exército, em Recife. Apresentava como referência outro informe da Polícia Federal. De início, o assunto: "Normas preventivas, acauteladoras e repressivas no tocante à subversão em universidades e escolas de pós-graduação". Com vernáculos empoeirados, a peça espraia diagnósticos psicológicos.
Em essência, o Exército procurava ampliar os expurgos na universidade, "infiltrada" por agitadores, terroristas e "traficantes de entorpecentes", estimulados por "autoridades universitárias abúlicas".
Para livrar os "centros culturais" da influência do "terrorismo marxista", os militares receitaram normas, com uma leitura rasa da educação sentimental de um guerrilheiro urbano: "investigar sobre alunos provenientes de lares desfeitos ou de pais alcoólatras, contraventores, desidiosos ou de classe social muito baixa".
Leitura ao rés-do-chão: o militante político era levado à luta armada pela desagregação familiar, as sagatibas do pai e a pindaíba.
Além disso, devia-se "estabelecer rigoroso exame intelectual e investigação social para ingresso nas universidades, mediante testes psicotécnicos, psicológicos e psiquiátricos".
Professor e ex-militante do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), Roberto Albergaria analisa:
– É um velho recurso ideológico, como tratam os sociólogos americanos e ingleses, da construção dos "folk devils" (diabos sociais) para uso das massas de pacatos cidadãos cúmplices que se querem "normais". Como os bons cristãos que ajudavam a dedurar os judeus avaros…
Em 1974, o general Heitor Fontoura de Moraes comandou a 6ª RM, sediada no Quartel da Mouraria, em Salvador. Entre 1975 a 1978, seria a vez do general Adyr Fiúza de Castro, um dos fundadores do CIE e especialista no setor de informações.
A caçada ao guerrilheiro Carlos Lamarca, no interior baiano, encontrou um dos seus QGs na 2ª Seção da 6ª RM, sob a batuta do então major Nilton Cerqueira (mais tarde, secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro). Na década de 70, o SNI contava com cerca de 40 agentes na Bahia.
Para Albergaria, os militares travestiam a disputa política numa "edificante batalha moral", fortalecida pela rede de colaboradores.
– Neste caso de patologização dos supostamente "perigosos terroristas", a Ditadura direitista brasileira terminou agindo de um modo aproximado com a ditadura do proletariado soviética. Aqueles Amigalhões-do-Povo (e do Partidão) internavam dissidentes como loucos, usando a psiquiatria como método de controle ideológico.
O tom moralizante e elitista se consolida adiante. Numa recomendação esquisita, com fumaças de norma constitucional, recomenda-se "elevar o preço das anuidades nas universidades e abulir (sic) a gratuidade".
Para oficiais militares, alunos pobres e filhos de alcoólatras eram propensos ao marxismo
Integrante da direção do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, Diva Santana relata as tentativas infrutíferas de diálogo com a 6ª Região Militar para ter acesso aos arquivos das Forças Armadas no Estado. Membro da Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos, Diva foi designada pelo Ministério da Justiça, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, para ter acesso aos arquivos baianos da Polícia Federal. As pastas misturavam criminosos comuns a políticos.
– Depois de pressionarmos, o superintendente cedeu também um fichário enferrujado, com 1.000 fichas. E lutamos pra obter o livro tombo. Mas nada dos inquéritos e processos enviados à Auditoria Militar. Cerca de 460 pessoas foram presas na PF, segundo nosso levantamento. Os arquivos do Dops e do Doi-Codi não foram encontrados. Depois, houve os papéis queimados na Base Aérea de Salvador – conta Diva Santana a Terra Magazine.
Em dezembro de 2004, a Rede Globo revelou a queima de papéis sigilosos na Base Aérea de Salvador. Fichas, prontuários e relatórios dos anos da ditadura militar passaram por perícia. Para o Tortura Nunca Mais, nem todos os papéis viraram cinzas, mas as Forças Armadas se fecham em copas e inviabilizam o acesso a velhos documentos sigilosos.
No reitorado de Naomar de Almeida Filho, designou-se uma comissão para avaliar e classificar os arquivos da Ufba, atualmente guardados na Biblioteca Central do campus de Ondina.
Confira a íntegra do informe confidencial do Exército, de 20 de dezembro de 1974:
"Esta Agência recebeu e difunde para conhecimento, o seguinte informe:
"É de suma importância para a Segurança Nacional, e preservação de nossas instituições, determos, como medidas preventivas e repressivas, os processos de subversão e terrorismo político que de ordinário ocorrem nas Universidades e Escolas de Pós-Graduação, em nosso País e em todo o Continente.
Nesses processos funcionam, com propósitos destrutivos, de amplo alcance nacional e internacional, os elementos subsequentes:
a) – uma pletora estudantil passiva, flexível, ignorante e proveniente, na quase generalidade, das camadas mais baixas da sociedade e, ipso facto, facilmente manejável por espíritos dotados de atributos de persuasão e liderança;
b) – uma caterva de agitadores e ativistas juventis, que não são estudantes, mas se habilitam como tais, segundo documentação adrede forjada. Esses indivíduos registram, invariavelmente, antecedentes policiais e penais, e portam armas e traficam com entorpecentes de toda natureza;
c) – grupos de professores, orientadores e investigadores marxistas que, quer na cátedra, quer em quaisquer oportunidades, insulfam idéias subversivas e pregam o terrorismo, a indisciplina e a subversão da ordem pública;
d) – autoridades universitárias abúlicas, indiferentes e sem personalidade, que se deixam pressionar por grupos de professores subversivos.
Para preservar as Universidades, as Escolas de Estudos Superiores e de Pós-Graduação do iminente perigo do terrorismo marxista e impedir que esses Centros Culturais continuem sendo refúgios e permanente instrumento de delinquentes políticos e focos de propagação de ideologias deletéricas e escusas, recomendamos as normas seguintes:
1°) – Investigar os antecedentes pessoais e familiares dos alunos, notadamente no que concerne a registros penais, políticos e psiquiátricos em membros de seus ascendentes e afim;
2°) – investigar sobre alunos provenientes de lares desfeitos ou de pais alcoólatras, contraventores, desidiosos ou de classe social muito baixa;
3°) – estabelecer rigoroso exame intelectual e investigação social para ingresso nas universidades, mediante testes psicotécnicos, psicológicos e psiquiátricos;
4°) – exigir notas mais altas de qualificação e seleção;
5°) – estabelecer normas mais rigorosas de disciplina, hierarquia e sociabilidade;
6°) – elevar o preço das anuidades nas universidades e abulir a gratuidade;
7°) – manter muito elevado o comportamento acadêmico em todas as universidades e, principalmente, nos diretórios;
8°) – manter vigilância sobre a aparição de líderes e agitadores estudantis e, se necessário, expulsá-los das universidades;
9°) – expulsar também qualquer aluno que tome parte em passeata com objetivo subversivo, de vandalismo, de desordem ou de tumulto;
10°) – responsabilizar, administrativa e criminalmente, o aluno que cause danificações a móveis, imóveis e instalações universitárias, obrigando seus pais ou responsáveis ao ressarcimento dos prejuízos decorrentes;
11°) – manter rigorosa fiscalização sobre o uso e tráfico de entorpecentes e drogas nos recintos escolares;
12°) – observar as possíveis relações entre organizações estudantis e grupos políticos;
13°) – examinar atentamente livros e publicações de caráter subversivo, a fim de impedir seu acesso às bibliotecas das universidades, aos diretórios acadêmicos, e aos grupos e ao próprio estudante;
14°) – coibir todos os tipos de cartazes, murais e inscrições com finalidade política ou subversiva;
15°) – probir reunião, assembléia ou conferência estudantil de caráter subversivo ou de crítica às nossas autoridades, às instituições públicas ou ao Governo Constituído.
É necessário, todavia, para a preservação da ordem em nossas universidades, que o respectivo corpo docente esteja compenetrado de sua alta responsabilidade e imune a qualquer contaminação subversiva e marxista. É necessário igualmente que as cátedras continuam lídimo padrão de inteligência, de probidade e de respeito às Leis, às Instituições e ao Governo".