No dia 29 de abril do corrente ano de 2008, o diplomata brasileiro José Viegas, nosso embaixador na Espanha, publicava um artigo intitulado “O petróleo é nosso”. Nele, à vista das mega-reservas recentemente anunciadas, sugeria que adotássemos, com as devidas adaptações, o modelo do Fundo de Petróleo, não especulativo, implantado na Noruega.
Como se sabe, com a descoberta de petróleo no Mar do Norte, esse país ficara inesperadamente mais rico, ao receber um fluxo adicional de renda permanente. Mas em lugar de elevar as importações e o consumo no presente, optou por postergar ganhos de bem-estar, em benefício das gerações futuras.
No dia seguinte, o engenheiro Paulo Metri, co-autor do livro “Nem todo o petróleo é nosso”, elogiava a proposta do embaixador, que considerava excelente, em vista do fato novo do Brasil tender a tornar-se um exportador de petróleo de pequeno ou médio porte. No entanto observava que, como pressuposto, havia que reformular a lei n. 9.478, de 1997, que entrega o petróleo a quem detém a concessão, mediante uma taxação que atualmente é mínima.
Passemos portanto, antes de prosseguir, a uma exposição sucinta dessa lei, promulgada a partir da emenda constitucional n. 9, de 9 de novembro de 1995, dentro do processo de mutilação ao qual a Constituição Cidadã foi submetida.
Com efeito, a Carta Constitucional de 1988 reiterava o monopólio estatal do petróleo, vigente desde 1953.
Assim, no seu artigo 177 e respectivos incisos, estabelecia que “constituem monopólio da União”: I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural; II – o refino do petróleo nacional ou estrangeiro; III – a importação e exportação desses produtos e derivados básicos resultantes; IV – o transporte desses produtos, marítimo ou por condutos.
Inconformado, mas não ousando ainda contrapor-se abertamente ao monopólio, o privatismo neoliberal urdiu o artifício de reescrever o parágrafo 1º do artigo 177, dando-lhe uma nova redação, antagônica à original.
“A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo, observadas as condições estabelecidas em lei”.
Assim, pela Emenda Constitucional n. 9 de 9.11.1995, a expressão “monopólio” era mantida no caput do artigo 177 (“constituem monopólio da União”), mas negada no novo parágrafo 1º do mesmo artigo, uma vez que as atividades essenciais mencionadas nos incisos I a IV eram dele excluídas. Em suma, retirava-se praticamente da Petrobrás o monopólio sobre as reservas de petróleo e gás. E isso era praticado à revelia da lei 2004, de 3 de outubro de 1953, que determinara no seu artigo 2º: “A União exercerá o monopólio estabelecido por meio da sociedade por ações Petróleo Brasileiro S.A.”
Através desse estratagema, o objetivo visado (quebra do monopólio) tentava disfarçar-se em “flexibilização” dele…Sempre eufemisticamente, tratavam ainda de interpretar a ilegalidade perpetrada como uma “reafirmação do monopólio” (sic) nas mãos do Estado e “não da Petrobrás”, a fim de incentivar a competição!
Animado por esse primeiro e decisivo passo, o privatismo acabou conseguindo colocar a questão de maneira explícita, com a promulgação da lei n. 9.478, de 6 de agosto de 1997, a chamada Lei do Petróleo, que não deixava qualquer sombra de dúvida sobre as intenções dos seus adeptos. Sem rebuços, ela facultava a apropriação por empresas privadas, inclusive estrangeiras, do petróleo extraído do nosso território.
Aliás, ainda antes da Emenda Constitucional n. 9, a Emenda Constitucional n. 6, de 5 de agosto de 1995, simplesmente revogara o artigo 171, que definia nitidamente o conceito de empresa de capital nacional, distinguindo-a daquela apenas sediada no País. Ou seja, as subsidiárias estrangeiras passavam a ter os mesmo direitos que as empresas nacionais, inclusive com acesso aos financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), gestor principal da poupança doméstica. Em conseqüência, o tratamento diferenciado é que se tornava inconstitucional!
Em 1998 era criada a Agência Nacional do Petróleo (ANP) que em 1999 iniciava as rodadas anuais de licitação de áreas destinadas à exploração e produção de petróleo. Como se sabe, em decorrência do modelo de concessão adotado, empresas estrangeiras arremataram a preços simbólicos áreas já descobertas e mapeadas pela Petrobrás, ganhando automaticamente o direito de exportar o óleo delas extraído. Com efeito, o artigo 26 da lei n. 9.748 conferia aos eventuais concessionários a propriedade plena do produto que obtivessem e a decisão autônoma quanto a ele. No entanto, como é óbvio, o correto seria preservar o recurso estratégico prospectado, em lugar de entregá-lo para ser exportado como uma mercadoria comum.
Cumpre lembrar ainda que em 1999 ocorreu a espantosa venda de 40% das ações preferenciais da Petrobrás na Bolsa de Nova York. Atualmente o governo ainda possui, felizmente, a maioria das ações ordinárias, embora se defronte com a pressão dos acionistas privados, que defendem acirradamente os seus lucros. De qualquer forma, porém, a Petrobrás continua, apesar de tudo, sob o controle acionário público, como estatal de economia mista, devido à luta do povo brasileiro e à resistência do corpo técnico da empresa.
E assim chegamos às vésperas da 9ª rodada, quando se opera uma inflexão fundamental. No dia 8 de novembro de 2007, realizava-se uma reunião extraordinária do Conselho Nacional de Política Energética, na sede da Petrobrás, no Rio de Janeiro, para um anúncio oficial da maior relevância, referente à descoberta de preciosos megablocos na camada do pré-sal. Em vista disso, decidiu-se suspender também os leilões programados para áreas contíguas à Tupi. Ou seja, excluíam-se da 9ª rodada de licitações da ANP os 41 blocos em que havia tal superposição com a nova província petrolífera.
Grande foi a indignação das multinacionais que registraram seu veemente protesto a esse ato patriótico praticado pelo governo, assessorado pelos engenheiros e técnicos da Petrobrás.
Simultaneamente vinha à tona a discussão acerca do marco regulatório. Em vista da evidente diminuição do risco exploratório, era proposta a substituição do sistema de concessões pelo de partilha, mais condizente com o interesse nacional.
O temor de uma mudança no marco regulatório e a retirada dos 41 blocos contíguos ao pré-sal inquietavam os investidores, já notoriamente informados acerca dos detalhes que lhes interessavam. Até a imprensa se referia ao nível de ansiedade das petroleiras que haviam gasto milhares de dólares para adquirir dados sísmicos acerca das reservas que foram retiradas do leilão. Aliás, essas áreas já chamavam a atenção delas desde a notificação das primeiras descobertas ali efetuadas pela Petrobrás, em 2005. Era sabido que os executivos dessas companhias vinham se dedicando à análise de áreas do pré-sal, bem como à compra de dados geológicos e outras informações adicionais do mercado.
Chegou o dia do leilão e efetivamente as “grandes” multinacionais não participaram.
Algum tempo depois, em fevereiro de 2008, ocorria o episódio do desaparecimento de importantes dados contidos em laptops gerenciados pela Halliburton. Furto comum? Espionagem?
Os engenheiros e técnicos da Petrobrás observavam ser esse comportamento comum na indústria do petróleo há anos. E acrescentavam que as suspeitas sobre a autoria do roubo podiam recair sobre muitos agentes do setor. Contudo, ressaltavam ironicamente que uma possível isenção podia abranger a Galp e a British Gas, por serem parceiras na Tupi, e a OGX de Eike Batista que usava outros recursos, cercando-se de ex-diretores da estatal, transformados em arquivos vivos. Aliás, comenta-se que essa promiscuidade foi levada em conta ao serem excluídos os blocos do pré-sal e áreas contíguas, da 9ª rodada.
Esse tipo de assunto, referente à apropriação clandestina de dados mapeados pela Petrobrás, voltou à tona faz cerca de um mês através de matéria publicada na Gazeta Mercantil (edição de 31 de julho de 2008) intitulada “Dados sobre poços do pré-sal podem ser vendidos em 2009”.
Trata-se dos relatórios de perfuração em Tupi, concluídos em 2007 e encaminhados pela Petrobrás à ANP. Esta última, apoiada na portaria n. 188, de 1998, pode disponibilizar informações sobre poços dois anos depois da conclusão da sua perfuração — no caso, 2009.
Na reportagem lê-se ainda que a venda de dados de perfuração de poços e estudos de sísmica é prática comum no Brasil.
No entanto, como sublinham os engenheiros da AEPET, trata-se de informações altamente estratégicas, fruto de árduo trabalho da Petrobrás. Ocorre ainda que alguns dados referentes ao pré-sal já eram conhecidos, como vimos, pelas petroleiras interessadas, desde quando se preparava a 9ª rodada. O caso é que o governo retirou 41 blocos de licitação, mas as informações permaneceram conhecidas.
Em vista disso, os engenheiros encaminharam denúncia ao Ministério Público, para investigar essa exposição de dados do pré-sal e também a terceirização de informações estratégicas pela empresa Halliburton. Aliás, além da Halliburton estar sendo investigada nos Estados Unidos, ocorre que, com a descoberta do pré-sal, o acesso clandestino aos levantamentos resultantes de trinta anos de pesquisa efetuada pela Petrobrás se tornava uma questão crucial.
Na essência do confronto entre os defensores da mudança do marco regulatório e o Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) que representa as multinacionais e o privatismo, está a Lei 9.478/97, que os segundos apóiam ferrenhamente.
Assim, por exemplo, um acólito do IBP, Adriano Pires, declara, repudiando o que qualifica de “ingerência” estatal na Petrobrás: “Cerca de 62% da empresa se encontra nas mãos de acionistas minoritários. Ainda que seja controlada pelo Estado, a Petrobrás responde a acionistas privados”. Ou seja, um dos resultados mais nefastos da Lei 9.478 é interpretado como positivo.
E quanto à Petrobrás, as multinacionais que sempre lhe manifestaram a maior fobia, passaram até pretensamente a defendê-la, contanto que cerceada e parasitada pela lei 9.478.
Já a posição verdadeiramente nacional é bem diferente — e antagônica.
Enquanto a cobiça externa e o neoliberalismo pressionam, com argumentos de toda a ordem, no sentido da aceleração de rodadas nos blocos do pré-sal, os economistas defensores da nossa soberania repudiam a geopolítica expropriadora que tentam nos impor.
E com respeito à Petrobrás, cumpre retirá-la da medíocre missão atual de “honrar seus acionistas”. Há, isto sim, que fazer com que o Banco Central recompre essas ações que foram alienadas.
Paula Beiguelman, Professora Associada da USP