Significa instruir sobre a organização sindical nos termos consolidados, respeitado o enunciado da Súmula 677-STF: “Até que lei venha a dispor a respeito, cabe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade”. Em primeira abordagem, anotamos algumas falhas, imperfeições e ilegalidades na Portaria que a comprometem parcialmente e indicam a necessidade de sua imediata revisão.
Inexistindo lei sindical específica, as regras contidas na CLT sobre organização sindical são aplicáveis pós-Constituição Federal de 1988? Esta questão vem sendo respondida pelo Poder Judiciário em face a questões específicas, quando a ele submetidos litígios decorrentes das mais variadas situações. A criação de entidade sindical é uma delas. Na medida em que as regras sindicais da CLT são questionáveis, o Ministério do Trabalho e Emprego gradativamente, através de instruções e portarias, adota normas não apenas regulamentadoras, mas verdadeiros dispositivos legais inovadores.
Então, os Ministros do Trabalho têm se transformado em legisladores. É exatamente o caso das várias Portarias sobre registro sindical, como o da atual Portaria 186/08, em verdade uma lei sobre registro sindical, tal o poder concentrado nas mãos do Ministério. Como, por exemplo, em se atribuir o direito de decidir sobre as impugnações, podendo determinar o arquivamento das mesmas e o conseqüente deferimento do pedido de registro da entidade sindical.
As impugnações
O art.10 da Portaria 186/08 possibilita que a impugnação venha a ser arquivada por dez motivos indicados nos seus incisos. Embora fundamentada a decisão de arquivamento da impugnação, sujeita a recurso administrativo nos termos da Lei 9784/1999, esta disposição transcende ao poder ministerial que deve estar restrito a receber os pedidos de registro sindical, publicá-los e receber as impugnações. Este é o limite de sua atuação.
Mais do que isso, trata-se de exorbitar em sua competência. Em recente decisão (20.02.2008), o juiz da 11ª Vara do Trabalho de Brasilia, DF, dr. Acélio Ricardo Vales Leite, acentua:”Tendo havido impugnação por parte da impetrante ao pedido de registro do novo sindicato, competia à autoridade coatora ater-se à análise do preenchimento dos requisitos traçados na lei, sem emitir qualquer juízo meritório acerca da oportunidade e da conveniência do desmembramento.
Ao mencionar que a criação do novo sindicato ‘não viola a unicidade sindical, haja vista que a sua criação decorreu da vontade da categoria’, ao analisar a impugnação, a autoridade coatora acabou por dizer que a oposição do impetrante não tem fundamento e, assim, não procede. Deveria ater-se à questão relacionada com os requisitos objetivos da impugnação e remeter as partes para as vias da conciliação ou do Judiciário” (vide autos 00142-2008-011-10-00-1). Assim, melhor seria se apresentada a impugnação, remetesse o processo para a autocomposição, medida inovadora constante da Portaria que permite, pela via da conciliação, resolver o litígio. Mas, na impossibilidade do acordo, sustar o andamento do pedido de registro até a decisão judicial final.
Retificação
Eis outros pontos. A regra da publicidade do ato constitutivo da entidade, a assembléia geral dos membros da categoria, se efetivará pelo edital de convocação publicado, simultaneamente, no Diário Oficial da União e em “jornal de grande circulação diária na base territorial”. A Portaria é falha em não especificar a necessidade de que o ato de convocação, ou seja, o edital, venha assinado por pessoa identificada quanto a CTPS, CPF, empresa ou contrato de trabalho e domicílio.
Assim também, a ata da assembléia geral será “acompanhada de lista contendo o nome completo e assinatura dos presentes”, determinação imprecisa e aberta às fraudes que vêm ocorrendo na fundação de entidades sindicais. Eis que deverá ser retificada a Portaria com a exigência da empresa, natureza social e sua localização, no caso de entidade sindical patronal; e do local de trabalho e CPTS do trabalhador, para comprovação da sua categoria profissional e de seu contrato de trabalho.
Outra lacuna observada é a inexistência de regras específicas para o desmembramento da entidade sindical originária, quer quanto a representação, quer quanto a base territorial. O parágrafo único do art. 3º trata das fusões e incorporações de entidades sindicais, consideradas alterações estatutárias, mas não se refere expressamente à constituição de nova entidade derivada da originária. Todas as questões relativas a estas situações devem ser revistas pelos formuladores da Portaria.
Entidades de grau superior
Este ponto é de maior gravidade. Outra novidade da Portaria 186/08 trata da formação e do registro das entidades de grau superior, federações e confederações, a organizar-se nos termos dos arts.534 e 535 da CLT. Como o processo de desmembramento de entidades sindicais não está explicitado em lei, o Ministério do Trabalho e Emprego vem reconhecendo a pluralidade no campo federativo e confederativo, embora esse campo sindical já esteja definido há muitos anos no sistema da unicidade sindical.
Relembramos que, não conseguindo a quebra do sistema da unicidade sindical pela reforma sindical pretendida, ela vem sendo efetivada pelo reconhecimento de sindicatos, federações e confederações paralelas ou desdobradas das entidades sindicais do plano básico. Um dos mais recentes exemplos dessa desconstituição por decisão do Ministério do Trabalho, é a aprovação da nota técnica que reconhece a existência legal da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro – Contraf – organização sustentada pela política da Central Única dos Trabalhadores.
Relembremos também a recente luta da Fetraconspar/CNTI contra a criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria da Construção, da Madeira e Assemelhados, sustada através da mobilização das Federações do setor e de medidas judiciais. A nova Portaria abre campo para o pluralismo no plano das federações e confederações, fato saudado pela CUT: “No que tange à criação de entidades de “grau superior”, como federações e confederações, sempre que os requisitos mínimos legais forem cumpridos, o Ministério do Trabalho irá efetuar o reconhecimento da referida entidade.
Para a Secretária de Organização da CUT Nacional, Denise Motta Dau, “a Portaria do MTE traz na sua orientação uma maior liberdade, abrindo espaço para a legalização de várias entidades de nível superior que já são reconhecidas de fato mas não de direito”(em 16.04.08 no site www.cut.org.br). Neste sentido, a ilegalidade contida na Portaria é manifesta, uma vez que o sistema confederativo é reconhecido na Constituição Federal, art.8º, sendo explicita a norma que preceitua: “é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica…”(inciso II do art.8º), ou seja, em qualquer grau significa também no grau superior das federações e confederações.
A prática sindical
Tanto o princípio da unicidade sindical, como o da liberdade e autonomia sindical, foram confirmados por históricas decisões do Supremo Tribunal Federal, assim como a necessidade do registro no Ministério do Trabalho e Emprego. Portanto, liberdade e unicidade sindical coexistem no sistema e deveriam ser garantidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Mas esta aparente contrariedade tem sido motivo de amplo debate judicial, na medida em que na prática sindical ocorre (a) a livre fundação da entidade (b) o pedido de reconhecimento pelo registro no Ministério do Trabalho e Emprego (c) a possibilidade da impugnação por entidade sindical que for atingida em sua representatividade sindical ou na sua base territorial (d) as decisões judiciais que decidem, em definitivo, as disputas em torno das controvérsias surgidas. Assim, em primeiro plano, é em torno do registro no Ministério do Trabalho e Emprego que as disputas entre as várias correntes do movimento sindical se degladiam.
Pois, a partir da decisão, favorável ou contrária daquele organismo público, que o Poder Judiciário tem decidido sobre a infringência ou não dos princípios constitucionais que norteiam a organização sindical brasileira. Por isso, não é aconselhável que o Ministério do Trabalho e Emprego baixe novas instruções que, ao invés de reforçarem o princípio histórico da unicidade sindical, abram campo de novas e profundas disputas sindicais.
Histórica decisão do STF
Vide histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, de 1995, em face de ação direta de inconstitucionalidade: “Registro Sindical e Liberdade Sindical: – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no interpretar a norma inscrita no art. 8º, I, da Carta Política – e tendo presentes as várias posições assumidas pelo magistério doutrinário (uma, que sustenta a suficiência do registro da entidade sindical no Registro Civil das Pessoas Jurídicas; outra, que se satisfaz com o registro personificador no Ministério do Trabalho e a última, que exige duplo registro: no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, para efeito de aquisição da personalidade meramente civil, e no Ministério do Trabalho, para obtenção da personalidade sindical) -, firmou a exigência de registro sindical no Ministério do Trabalho, órgão este que, sem prejuízo de regime diverso passível de instituição pelo legislador comum, ainda continua a ser o órgão estatal incumbido de atribuição normativa para proceder à efetivação do ato registral. Precedente: RTJ 147/868, Rel. Min.Sepúlveda Pertence.
O registro sindical qualifica-se como ato administrativo essencialmente vinculado, devendo ser praticado pelo Ministro do Trabalho, mediante resolução fundamentada, sempre que, respeitado o postulado da unicidade sindical e observada a exigência de regularidade, autenticidade e representação, a entidade sindical interessada preencher, integralmente, os requisitos fixados pelo ordenamento positivo e por este considerados como necessários à formação dos organismos sindicais” ( ADI 1121-9, Tribunal Pleno, STF, DJ 06.10.95, ementário 1803-01, relator Ministro Celso de Mello).
Destaca o acórdão que o Ministro do Trabalho se obriga, ao decidir sobre o registro sindical, adotar “…resolução fundamentada, sempre que, respeitado o postulado da unicidade sindical e observada a exigência de regularidade, autenticidade e representação, a entidade sindical interessada preencher, integralmente, os requisitos fixados pelo ordenamento positivo…”. Exatamente a observância de tal postulado é que balisará, se houver, a decisão judicial que confirmará ou negará o despacho ministerial. Mas ao legislar sobre a matéria sindical via a Portaria 186/08, a autoridade administrativa se transforma em verdadeiro legislador/ julgador, monopolizando a ação sindical em torno de suas resoluções.
A salvaguarda da unicidade sindical
Por isso, anteriormente, em 1993, o Supremo Tribunal Federal definia o caráter do despacho ministerial sobre registro sindical em acórdão em mandado de injunção: “1.O que é inerente à nova concepção constitucional positiva de liberdade sindical é, não a inexistência de registro público – o qual é reclamado, no sistema brasileiro, para o aperfeiçoamento da constituição de toda e qualquer pessoa jurídica de direito privado -, mas, a teor do art.8º, I, do texto fundamental, “que a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato”; o decisivo, para que se resguardem as liberdades constitucionais de associação civil ou de associação sindical, é, pois, que se trate efetivamente de simples registro – ato vinculado subordinado apenas à verificação de pressupostos legais -, e não de autorização ou de reconhecimento discricionários. 2.
A diferença entre o novo sistema, de simples registro, em relação ao antigo, de outorga discricionária do reconhecimento sindical não resulta de caber o registro dos sindicatos ao Ministério do Trabalho ou a outro ofício de registro público. 3. Ao registro das entidades sindicais inere a função de garantia da imposição de unicidade – esta, sim, a mais importante das limitações constitucionais ao princípio da liberdade sindical”. ( Mandado de Injunção 144, Tribunal Pleno, DJ 28.05.93, ementário 1705-1, relator Ministro Sepúlveda Pertence).
Ao quebrar o princípio da unicidade, impedindo o livre curso da impugnação e aceitando o pluralismo no âmbito das entidades federativas e confederativas, a Portaria 186/08 subverte o sistema e caminha em direção à sua desconstituição via-estatal. É fundamental salientar que o STF indica, com clareza, a essência do ato ministerial que é de simples registro,. mas basicamente para garantir o princípio constitucional da unicidade sindical, ou seja, a função de salvaguarda. Esta diretriz se consubstanciou na Súmula 677 do STF:”Até que lei venha a dispor a respeito, cabe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade”.
Parecer
O dr. Hélio Stefani Gherardi, advogado, do corpo técnico do DIAP, publicou parecer sobre a Portaria n° 186/08 no site daquele organismo, iniciando o debate sobre as novas instruções. Salienta, na sua precisa exposição, que a Portaria “trouxe, desta forma, as adequações necessárias aos procedimentos administrativos para registro sindical e alterações estatutárias, estabelecendo as exigências claras para efetiva e concreta comprovação de representatividade e base territorial, adotando a possibilidade da autocomposição para a solução de conflitos intermináveis, objetivando amparar categorias que se encontram à margem da própria evolução em razão de infindáveis discussões sobre quem, efetivamente, é seu representante sindical.
Por outro lado, apresenta, em relação às entidades de grau superior, a possibilidade do pluralismo sindical, embasada, evidentemente na Lei n° n˚ 11.648, de 31 de março de 2.008, que reconheceu formalmente as Centrais Sindicais.” (consulte a íntegra do parecer em www.diap.org.br).
*Advogado trabalhista
Fonte: Portal do Diap