Numa conversa com minha amiga e camarada Abgail, chegamos a uma conclusão: viver na Favela Portelinha é o sonho da classe média de qualquer lugar do mundo, afinal, trata-se de uma classe que vive amedrontada pela violência. Mas, ali a “mão-visível” do todo poderoso Estado chamado Juvenal Antena, garante o que o limitado poder estatal não consegue fazer, em especial, numa das capitais brasileiras de maior incidência do tráfico e, por conseqüência, da violência urbana.
Sabe aquelas letrinhas que aparecem na abertura da novela, dizendo que se trata de uma obra de ficção? Deveria vir em letras garrafais, porque mais do que ficção, chega ser um insulto à inteligência dos telespectadores: a Portelinha é o paraíso. Mesmo que se contestem os métodos de Juvenal Antena, ele justifica da forma mais convincente, dada a ineficiência do Estado.
Bela gargalhada
Poderia falar de vários aspectos da novela que demonstram isso, mas hoje, resolvi escrever sobre algo que chega doer, de tão absurdo: a personagem Maria Paula, que é comerciária, funcionária do Supermercado Extra, do Grupo Pão de Açúcar. Se a Portelinha é o paraíso, ser comerciária como a personagem, é o sonho profissional de qualquer mulher, num país que, segundo o IBGE, 1/3 das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres.
Maria Paula, que teve todo seu patrimônio roubado pelo vilão Marcone Ferraço, teve a “sorte” de arranjar emprego no Extra e dali consegue tirar seu sustento, ter seu belo apartamento numa zona de classe média-alta da capital carioca, manter seu filho numa escola particular, ter empregada doméstica e, em qualquer problema que possa haver, o seu chefe a libera, em horário de expediente, para tratar de suas questões particulares.
Quem não quer ser comerciária, assim? Pergunte a qualquer trabalhadora do comércio se sua vida é desse jeito e, por certo, se ela não se ofender, dará uma bela gargalhada, pois seria cômico, se não fosse trágico. A realidade, infelizmente, está muito distante da ficção da novela.
Situação de desilgualdade
Funcionárias do Extra denunciam a discriminação imposta às mulheres. É o caso da empregada do Rio de Janeiro, de 28 anos, que foi admitida como operadora de caixa do Supermercado Extra em fevereiro de 2000, para trabalhar das 7h às 15h, com folga às sextas-feiras, com salário de R$ 254,21. Em maio, quatro dias depois de realizar teste de gravidez, a empregada foi demitida, sem justa causa. A jornalista Cláudia Valente, relata que a moça (felizmente) ganhou a reclamação trabalhista. No “Google”, é possível encontrar denúncias de racismo, de invasão de áreas públicas, de desrespeito à legislação trabalhista, entre outras.
A mulher brasileira permanece vivendo situação de desigualdade, num quadro em que, apesar de representar mais de 40% da população economicamente ativa (56,6% estão no setor de serviços), elas recebem 31% a menos que os homens. Portanto, “Duas Caras” afronta as trabalhadoras no comércio, que necessitam de creches e escolas públicas para seus filhos, que pagam aluguel em vilas (que não são nenhuma Portelinha), que adoecem pela exaustão de uma jornada de trabalho excessiva, que não tem (sequer) os finais de semana para o convívio familiar e, no dia de folga, tem que dar conta da faxina, pois a empregada doméstica é ela mesma.
*Jornalista, secretária executiva da CTB-RS