Quando jovens morrem fuzilados morremos todos

Existe em nossa sociedade um conceito profundamente enraizado, tão antigo quanto equivocado, um senso comum que foi desde sempre incentivado pelas secretarias de Segurança Pública dos governos estaduais (detentoras do controle das polícias e do monopólio da violência de Estado) que tenta relacionar Segurança Pública com truculência, brutalidade e vingança. A velha falácia dos fins justificando os meios.

Roberto de Souza Penha, Carlos Eduardo de Souza, Cleiton Correa de Souza, Wilton Esteves e Wesley Castro RodriguesRoberto de Souza Penha, Carlos Eduardo de Souza, Cleiton Correa de Souza, Wilton Esteves e Wesley Castro Rodrigues

“O primeiro e o segundo disparo me causam espanto, o terceiro me deixa alerta, o quarto desassossegado, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo-primeiro balbucio em espanto o nome de Deus, no décimo-segundo grito-o. No sexagésimo me encontro assassinado juntamente com os rapazes. Morri crivado de balas com eles.”

(Livre adaptação que fiz do conto Mineirinho de Clarice Lispector, para gritar minha indignação diante da barbárie de mais uma execução praticada por policiais militares).

O policial, diante de uma situação de confronto é orientado a atirar para matar, e se realizar seu intento  –  a morte do criminoso – será apoiado por seus pares, parabenizado por seus superiores e aplaudido pela sociedade.

Matou em cumprimento do dever? Então o dever foi cumprido a contento.

Somado à isso temos uma insana “guerra contra as drogas”, o formato arcaico e militarizado das polícias, o corporativismo dentro dos batalhões e a mentalidade de uma parcela dos policiais – que não pode ser desprezada – e que acredita piamente serem versões reeditadas do “Capitão Nascimento” do filme Tropa de Elite.

(Nota mental: me veio à mente o sucesso de outro filme, um “clássico” dos anos 1980 – Cobra – onde Silvester Stallone interpretava Marion Cobretti, um policial que resolvia todos os seus problemas usando a violência: desde uma simples questão como a disputa por uma vaga de estacionamento até uma questão mais complexa, como diferenças pessoais que tinha com seu comandante dentro da polícia. Sua frase mais recorrente: “O crime é uma doença. Eu sou a cura”.)

Muitos policiais praticam assassinatos amparados por uma moralidade obtusa mas socialmente aceita de que a execução de pessoas com antecedentes criminais “é legítima para extirpar o crime da sociedade”.

A sociedade aceita que pessoas sejam executadas caso “ofereçam resistência” contra forças policiais. Consideram “justas” tais mortes.

Uma cooptação barata do verdadeiro significado da palavra “Justiça”.

Quando apenas um disparo já é covardia, o que se dirá quando foram mais de sessenta?

Tais mortes tornam-se estatísticas, “autos de resistência” ou “resistências seguidas de morte”, o que dá margem a práticas no mínimo abusivas, e muitas vezes criminosas, por parte dos agentes de segurança pública do Estado.

Esse mecanismo jurídico acaba criando oportunidades para que crimes sejam cometidos.
Ora, são não poucos os casos em que policiais militares forjam autos de resistência seguida de morte, intrujam armas em cenas de crime, adulteram dados, intimidam e ameaçam testemunhas.

A manutenção dessas práticas criminosas é duplamente cruel, posto que tenta se justificar promovendo o assassinato da reputação dessas vítimas, amparados pela moralidade a qual citei anteriormente: a sociedade apoia o policial que mata alguém com histórico de antecedentes criminais.

Resta a amargura dos familiares sepultando seus entes queridos sob muitas vezes o aplauso cúmplice dos apoiadores de policiais violentos, com a sempre a covarde insinuação de que os mortos “não foram vítimas inocentes”.

“Enterrei meu filho no escuro”, disse Mônica Aparecida Santana Corrêa, mãe de Cleiton Corrêa de Souza, assassinado por policiais militares

Esse pensamento tortuoso leva ao trágico senso comum cujo resultado jamais pode ser outro que não a tão corriqueira banalização da violência: “bandido bom é bandido morto”.

Mesmo que a vítima não seja um bandido, e mesmo que as recordações e o amor de seus familiares e amigos insistam em não morrer juntamente com seus corpos agora sem vida.

Criou-se um espiral de vingança, que se comprime como uma mola e que quando se solta está causando tragédias cada vez piores.

Está criada toda uma cultura entre setores dos mais atrasados e fascistas na sociedade, juntamente com agentes de segurança pública que se colocam “como uma opção de cura” para uma doença a qual contribuem agravando-a de maneira insana, e na maioria dos casos impunemente.

Inocentemente, ou nem tanto, ou nem um pouco, tentam fazer parte de alguma “solução”, embora sejam na maioria dos casos o próprio problema resida em suas próprias práticas.

A cada disparo efetuado por um policial militar fica patente a necessidade de se discutir com toda a sociedade uma reformulação da polícia, repensar um projeto de Segurança Pública que contemple uma polícia cidadã, humana, desmilitarizada.

O rosto é de Jorge, pai de Roberto. O rapaz de 16 anos que foi fuzilado por PMs quando comemorava seu primerio emprego com quatro amigos no Rio

E que essa polícia veja no cidadão uma vida a ser defendida, não um inimigo a ser abatido.

A cada disparo de arma de fogo efetuado por algum policial militar contra qualquer cidadão, desarmado ou não, fica mais patente o fato de que a polícia enquanto militar está preparadíssima para uma guerra, mas totalmente despreparada para conviver, ou mesmo a ajudar a manter – uma democracia.

A penúltima tragédia ocorrida no Rio de Janeiro (digo penúltima porque certamente não será a última) e que mais uma vez envolve policiais militares ultrapassa as raias do absurdo, dada a crueldade e a já tradicional e rotineira covardia demonstrada por seus perpetradores.

Não há como sequer imaginar o que passa na mente de agentes de segurança organizados como assassinos, entrincheirados covardemente à espreita de vítimas indefesas.

O que desejavam? Qual era a real intenção daqueles policiais?

Quando não sabemos as respostas para essas perguntas resta a constatação de que na noite do último sábado, no Rio de Janeiro, todos nós morremos um pouquinho dentro daquele carro.

Juntamente com o Roberto, o Carlos Eduardo, o Cleiton, o Wilton e o Wesley, assassinados com mais de 60 tiros disparados por policiais militares, quantos sonhos foram interrompidos?

Mais cinco vidas que se vão, cinco meninos que perderam suas vidas assassinados por inimigos que nem sabiam que tinham.

“O primeiro e o segundo disparo me causam espanto, o terceiro me deixa alerta, o quarto desassossegado, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo-primeiro balbucio em espanto o nome de Deus, no décimo-segundo grito-o.

No sexagésimo me encontro assassinado juntamente com os rapazes.

Morri crivado de balas ao lado deles.”

Este artigo foi publicado originalmente no Portal Vermelho em dezembro de 2015, mas continua trágica, triste e dolorosamente atual.

Diógenes Júnior é Assessor de Comunicação Social e Sindical, historiador independente, ativista político e dos Direitos Humanos, militante do PCdoB e pai do Fidel.

Os artigos publicados na seção “Opinião Classista” não refletem necessariamente a opinião da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e são de responsabilidade de cada autor.

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