Os Correios estão ameaçados, por que defendê-los

No Brasil, um processo de desmonte dos Correios segue na velocidade das encomendas expressas. Esse sucateamento dos serviços postais, ao qual todos estamos expostos, visa provavelmente tentar a privatização de uma das maiores e mais eficazes empresas públicas brasileiras e transferir uma atividade lucrativa, sigilosa e estratégica para as mãos do mercado.

Fechamento de agências. Sucateamento. Em silêncio, governo prepara entrega de serviço essencial para integração do país – e ainda mais indispensável, no século 21Fechamento de agências. Sucateamento. Em silêncio, governo prepara entrega de serviço essencial para integração do país – e ainda mais indispensável, no século 21 Após o último concurso público, ocorrido em 2011, a contratação está suspensa nos Correios, enquanto as demissões são largamente incentivadas pela administração central. E do Oiapoque até o Chuí, a população vem sendo surpreendida com o fechamento repentino de agências postais e a implantação de um programa de entregas em dias alternados, em substituição à entrega diária.

Muito se fala da chamada “crise dos Correios”, que seria uma espécie de prenúncio do fim da era do serviço postal público no Brasil. Mas essa é mais uma crise falaciosa, minuciosamente construída para gerar consensos e preparar o terreno para o projeto neoliberal que se anuncia. Se a internet, longe de ter significado o fim do correio, antes impulsionou os serviços postais por meio do comércio eletrônico; se as faturas de cartão de crédito e ordens de pagamento ocupam parte significativa das caixas de correio de praticamente todas as residências; e se hoje o fluxo postal é bastante superior a outrora, chegando mesmo a alcançar cifras inéditas na história; o que ameaça o futuro do correio público no Brasil?

A palavra crise foi transformada num dos motes explicativos da realidade contemporânea. Na linguagem midiática e em sua reprodução cotidiana, tudo é crise: da economia, da política, da sociedade, do governo, das instituições, do trabalho. Neste momento em que crise é evocada para tudo, perde seu potencial elucidativo. Em vez de elemento estrutural na lógica do capitalismo, passa a ser discutida em termos mais conjunturais e vulgares. Todos os dias uma “crise” é superada e outra recriada. Omite-se que essas situações e discursos são produzidos para gerar instabilidade em certos países, governos e empresas. Ora, de que se trata senão da crise da crise?

No caso dos Correios, o discurso serve para desviar o foco. Não estamos diante de um assunto técnico ou contábil, a ser analisado por “especialistas”. Trata-se, antes de tudo, de uma questão política. Está em jogo a circulação de objetos, mercadorias e mensagens de todas as pessoas, bem como o sigilo da informação confiada à empresa postal.

Desmonte com argumentos capengas

Em contraposição aos Correios públicos, outro modelo – corporativo e privatista – vem sendo apresentado ao país. Trata-se do projeto neoliberal elaborado e anunciado no bojo da entrega das empresas estatais ocorrida na década de 1990, mas que não chegou a alcançar o serviço postal. Agora, quando tal projeto retorna com vigor – e com ar de entrega atrasada –, uma privatização dos Correios traria consequências gravíssimas em, ao menos, quatro dimensões.

No âmbito social, seria a extinção da universalidade do serviço postal, um princípio reconhecido internacionalmente e inscrito na Constituição. As empresas privadas escolhem os lugares onde atuarão, sob a lógica de mercado. No plano econômico, haveria demissões em massa (os Correios reúnem mais de 100 mil trabalhadores) e dificuldades logísticas para setores da economia que dependem de um serviço postal com máxima capilaridade, em serviços como o comércio eletrônico. Na dimensão territorial, o significado imediato seria retrocesso no processo de integração dos lugares e regiões, causado pelo fechamento de agências. Por fim, em termos geopolíticos, com a transferência para a iniciativa privada, o Estado teria dificuldades em assegurar o princípio de inviolabilidade das correspondências, além da ameaça à soberania nacional ocasionada pela possiblidade de controle desse serviço estratégico por empresas estrangeiras.

O projeto neoliberal é frágil, pois se vale de argumentos capengas, que devem ser desfeitos. Em primeiro lugar, o discurso de que a ECT – empresa estatal que dá personalidade jurídica aos Correios – não dá mais lucro é falacioso. A ECT acumulou lucros sucessivos por mais de uma década (inclusive enviando vultosas reservas ao Tesouro Nacional). Apenas nos últimos três anos apresentou questionáveis relatórios contábeis, que com despesas superiores à receita. A empresa não está “muito grande”: seu tamanho corresponde à capiliaridade necessária para universalizar os serviços postais no Brasil. Também é tolo argumentar que a Lei Postal (6.538/78) é arcaica porque promulgada durante a ditadura militar. Os princípios deste dispositivo foram ratificados na Constituição de 1988 e estão conformes aos padrões estabelecidos pela União Postal Universal. E como uma das empresas postais melhor avaliadas no mundo, não se pode acusar a ECT de ineficiência.

É necessário, portanto, um esforço para pensar os agentes interessados – ou não – na privatização dos Correios. A população não parece apoiar essa ideia, mas esse é um dado ainda genérico – pois não há mobilização em curso. Os sindicatos rejeitam o projeto. Para as empresas nacionais de e-commerce e para outras pequenas e médias empresas, não parece inteligente trocar um único operador logístico nacional por várias empresas prestadoras de serviços, sem que nenhuma atenda a todos os lugares. Os únicos agentes explicitamente interessados nessa negociata parecem ser o atual governo e as empresas multinacionais de correio – FedEx, UPS e DHL.

Por parte do governo, o desmonte começou a ser realizado por meio da troca da presidência da empresa. Ela foi entregue a Guilherme Campos um deputado da “base aliada” (ex-presidente do PSD, de Gilberto Kassab) sem conhecimento algum sobre serviços postais, justamente quando se afirma que a empresa não vai bem. Arauto do neoliberalismo e do pensamento fácil, ele repete frases clichê, como “o monopólio postal é um ônus para o país”, mas não sabe explicar o porquê. Confunde e esquece-se que o monopólio não é da empresa, mas do Estado, e nem o Estado é do governo.

Em sua gestão, agências estão sendo fechadas (um ato cuja constitucionalidade deveria ser questionada, por violar a universalidade do serviço postal) em todas as regiões do país, uma estratégia que objetiva aumentar a receita das agências privatizadas (“franqueadas”). A entrega domiciliar diária passou a ser realizada apenas em dias alternados em muitas cidades. Há programas de demissão voluntária, suspensão de concursos públicos, cobranças no plano de saúde dos funcionários e perseguição a representantes sindicais. Tudo isso no mesmo envelope das manobras contábeis, que contabilizam despesas como distrato do contrato com o Banco do Brasil e gastos com futuros aposentados, o que inflaciona o cômputo das despesas e alimenta o discurso de “crise”.

As multinacionais, por sua vez, ávidas por um dos maiores mercados postais protegidos do planeta, são as maiores interessadas no desmonte do serviço público e principais destinatárias do patrimônio do correio brasileiro. Em 2009, por exemplo, entraram conjuntamente com pedido de quebra do monopólio postal estatal no STF – uma reivindicação que o tribunal julgou inconsistente e que o levou a ratificar o regime normativo brasileiro.

Concentrado no problema conjuntural e imediato de resultados contábeis da ECT nos últimos dois ou três anos, o debate proposto pelo governo camufla o papel central do serviço postal público para o país. Com três séculos e meio, a história postal brasileira confunde-se com a própria história nacional. O correio assegurou as comunicações no período colonial e no século XIX participado ativamente do processo de consolidação das fronteiras e ocupação do território brasileiro. Já no século XX, o projeto geopolítico do então Departamento de Correios e Telégrafos – DCT – ampliou a presença do Estado para além das áreas mais urbanizadas e povoadas da faixa litorânea, principalmente por meio do correio aéreo nacional. Assim, o correio brasileiro foi protagonista de um processo gradativo de integração do território, consolidado com a criação da ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – em 1969 e a consequente instalação de agências em todos os municípios. São hoje mais de 10 mil agências próprias – a maior rede logística do Brasil, cobrindo todas das cidades.

Com tal capilaridade, o correio brasileiro chega ao século XXI com um papel relevante para a integração nacional, especialmente por se tratar de um país com desigualdades internas das maiores encontradas no globo. Nele, é indispensável um serviço público que conecte todos lugares e de todos os agentes – Estado, mercado, pessoas físicas ou jurídicas – no tempo do cotidiano, com entregas realizadas diariamente. Por exemplo: montar uma estratégia logística sincronizada para a entrega de objetos expressos sensíveis ao prazo (tipo Sedex), tanto em regiões metropolitanas quanto nas cidades ribeirinhas da Amazônia, é uma tarefa árdua e de alta complexidade.

Por isso, os Correios foram se transformando, paulatinamente, numa espécie de operador logístico do Estado. A execução de diversas políticas públicas vigentes está largamente amparada na ação ubíqua da estatal. Em todos os municípios, a empresa participa da elaboração de um componente básico da cidadania – a criação ou formalização de endereços, além de ser em muitas localidades a única instituição responsável pela emissão de documentos como o CPF e o certificado digital. Fundamental na implantação do Programa Fome Zero, o serviço postal público continua agindo rapidamente para a entrega de donativos (alimentos, roupas, medicamentos, etc.) em casos de catástrofes ou situação de emergência, como secas, enchentes ou deslizamentos. Em São Paulo, é digna de nota a operação que entrega mensalmente 1.700 toneladas de leite nos domicílios mais pobres.

Em nível nacional, tomemos as políticas mais emblemáticas. Há uma década e meia, as agências postais têm levado serviço bancário aos municípios onde os bancos recusam-se a atuar. Uma parceria com o Banco do Brasil e a Receita Federal garante o programa Exporta Fácil, permitindo a pequenos produtores e artesãos enviarem suas mercadorias diretamente a mercados no exterior.

Mas essa importância não se restringe a atividades econômicas: as eleições no Brasil, realizadas de maneira sincronizada em todo o país, dependem largamente da logística dos Correios; o sistema judiciário, em todas as escalas, vale-se do serviço de carta registrada com aviso de recebimento. E o que dizer da educação? Os Correios realizam anualmente a maior operação de entrega de livros didáticos do mundo, o que garante às escolas um calendário e um currículo nacionalmente unificado. Com esse currículo comum, os alunos podem depois ser avaliados por exames nacionais, a exemplo do ENEM, cuja aplicação sincronizada também depende da entrega e coleta em todos os locais de prova simultaneamente. Em muitas cidades, até a entrega de vacinas depende dos Correios.

Neste ponto, vale destacar a importância do monopólio postal estatal — uma reserva de mercado da União que incide sobre o segmento de mensagens (cartas e telegramas). É ele que garante aos Correios um faturamento capaz de equalizar, no mercado competitivo de encomendas, sua autonomia financeira e o custeio total da operação, assegurando o serviço em lugares onde o serviço é deficitário e a lógica do lucro recomendaria abandonar.

O selo da resistência

Os trabalhadores dos Correios possuem papel central na defesa do serviço postal público e no combate ao projeto neoliberal. Resistir, no entanto, não significa apenas agir em resposta aos ataques em curso, mas também passa pela elaboração de um contra-projeto. Significa conhecer e denunciar as estratégias hoje implementadas e desconstruir os discursos largamente propagados pelo governo e pela mídia. Além disso, inclui a árdua tarefa de superar a burocracia sindical e os acordos repetidamente feitos entre seus representantes, que flertam com o poder, e os próprios autores do desmonte.

Também não podemos aceitar que o projeto de resistência venha embrulhado de fora, como no recente alarde criado pela notícia da revista Forbes, sugundo a qual “a ECT é a melhor empresa de correios do mundo”, como se disso não soubéssemos. E se amanhã a Forbes disser que ela é a pior empresa, aceitaremos? Os veículos do neoliberalismo, emitentes de um discurso global pronto e único, exaltam o correio brasileiro no exterior para atrair os interesses do mercado e dos investidores. Aqui propagam exatamente o oposto: declaram sua suposta ineficiência, logo sua falência e, com o carimbo de suas manchetes, exclamam: “vende-se!”. Para nós, o importante é que os Correios sejam a melhor empresa de correio do e para o Brasil, segundo os brasileiros.

E, afinal, qual é o endereço da resistência? Difícil definição, mas certamente ultrapassa o conjunto dos trabalhadores dos Correios e inclui toda a sociedade na defesa de um serviço postal público e universal. Não estamos discutindo outra coisa que não seja uma ideia de cidadania. Para a construção de um outro projeto, popular e cidadão, é urgente pensar um modelo cívico do território, como propôs o geógrafo Milton Santos1 – aquele que atenda às necessidades mais básicas da população ali no lugar onde se está. No Brasil, ao rastrear as ações dos Correios poderemos encontrar pistas do caminho a seguir.

Por Igor Venceslau é geógrafo, mestre e doutorando em Geografia Humana pela USP. Artigo publiado no Blog em Outras Palavras


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