O jovem Marx e os despossuídos

Este 2017 trouxe duas novidades sobre Karl Marx. Uma, mundial: o lançamento, em meados do ano, do filme O Jovem Marx, de Raoul Peck; outra, local: a publicação, em janeiro, pela primeira vez no nosso país, de Os despossuídos – título com que a Boitempo enfeixou os artigos de Karl, publicados de 25 de outubro a 3 de novembro de 1842, na Gazeta Renana, sobre a lei referente ao furto de madeira – no ano seguinte, devido a estes e outros artigos seus, o jornal foi fechado pelo governo.

O filme começa com a repressão policial a pessoas que recolhem pedaços de madeira e galhos na floresta. Durante as cenas, são citados trechos dos artigos que estão em Os despossuídos. Termina com a elaboração do Manifesto do Partido Comunista, escrito em 1847 e publicado no início de 1848. Sem abordar discussões entre os conteúdos dos escritos de Marx e Engels desse período e dos posteriores, como O capital (1863) e O anti-Dühring (Engels, 1877), o filme trata da vida e das atividades dos dois fundadores do materialismo dialético quando tinham entre 20 e 30 anos – Marx, nascido em 1818; Engels, em 1820.

 Embora tenham se encontrando antes, em 1842, ainda na Alemanha, os dois só se tornaram amigos em Paris, no exílio de Marx, em 1844. O filme cita, nominalmente, ou se refere ao conteúdo em diálogos entre os protagonistas, a obras até então escritas por eles. De Engels, Esboço para uma crítica da economia política (1844) e A situação da classe trabalhadora (1845). De Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843), Manuscritos econômicos-filosóficos (escritos em Paris em 1844), Teses sobre Feuerbach (1845), Miséria da Filosofia (1847) e parte de sua correspondência, incluindo as parcerias: A sagrada família, ou crítica da crítica crítica, contra Bruno Bauer e consortes e A ideologia alemã (ambos de 1845). Alguns desses textos só foram encontrados e publicados na primeira metade do século passado, graças a pesquisadores da União Soviética, então comandada por Stálin.

O diretor do filme foi ministro da Cultura do Haiti nos anos 1990 e atualmente preside a escola de cinema Femis, do Ministério da Cultura e da Comunicação da França. Nasceu no Haiti e ainda jovem migrou para o Congo. Estudou nos Estados Unidos, na França e na Alemanha. Sua filmografia inclui Lumumba, sobre o líder assassinado da independência do Congo, e Eu não sou seu Negro, indicado ao Oscar de melhor documentário em 2016.

Para ele, “Marx sempre foi incontornável. Não podemos explicar nada sobre a sociedade na qual vivemos sem voltar ao seu pensamento, aos conceitos que ele criou e à sua grade de explicações. … Eu queria mostrar Marx, Engels e Jenny, a esposa de Marx, na vida concreta, a partir da própria palavra deles. Eles são jovens, eles têm em torno de 20 anos, são revoltados e ambicionam mudar o mundo. É essa a essência do filme. E meu objetivo, desde o início, foi essa formidável história que inspira jovens hoje em dia e espero que ela alimente seus próprios combates. Eu não fiz esse longa metragem olhando pelo retrovisor, mas olhando para a frente, em direção ao presente e ao futuro. Esse filme é um convite para que eles tomem as rédeas de suas vidas, como fizeram esses três jovens na época deles, um convite para que eles mudem tudo o que deve ser mudado, sem colocar limites a priori. Conheçam sua história, aprendam a ver a relação entre os eventos à primeira vista desconectados, armem-se intelectualmente, organizem-se e lutem! É um trabalho! Essa é a mensagem”.

Marxismo em formação

Já Os despossuídos traz os textos, que abrem o filme, de um Marx materialista, fortemente influenciado pela filosofia e conceitos idealistas de Georg Wilhelm Friedrich Hegel mas, principalmente, pela sua dialética e inclusive estilo de redação, com formulações engenhosas como “Se o conceito do crime exige a pena, a realidade do crime exige uma medida de pena. O crime real é limitado. A pena deverá ser limitada para ser real, e terá de ser limitada conforme um princípio legal para ser justa. A tarefa consiste em fazer da pena a consequência real do crime”.

Esses textos, escritos quando Karl era um jornalista de 24 anos, debatem uma questão permanente para o movimento socialista, a da propriedade, sua origem e seus limites, então pontuada pela concepção de Pierre-Joseph Proudhon, cuja relação com Marx também é abordada no filme (se, nos artigos, a posse da madeira, algo resultante da natureza, anterior à existência humana, é a motivação da abordagem do autor, atualmente Peter Brabeck-Letmathe, presidente do grupo Nestlé, quer privatizar a água do planeta… ).

Os artigos publicados no livro também cuidam das relações entre direito e Estado, direito e interesses de classes – numa época em que o autor ainda não havia concluído que a ideologia de uma época é a ideologia da classe dominante e que o Estado é, no fundamental, um instrumento de dominação dos exploradores sobre os explorados, dos possuidores sobre os despossuídos – para usar a expressão dos editores -, mas já ia se aproximando dessa compreensão. Também neles aparecem, ainda sem o conteúdo que posteriormente assumiriam, expressões como “valor” e “mais valor” (opção da editora para “mais valia”).

No seu Prefácio de Para a crítica da economia política (1859), Marx se refere a esse período: “No ano de 1842-43, como redator da Gazeta Renana, vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais. Os debates do Dieta” (parlamento) “Renana sobre roubo de lenha e parcelamento da propriedade fundiária, a polémica oficial que Herr von Schaper, então presidente da província renana, abriu com a Gazeta Renana sobre a situação dos camponeses do Mosela, por fim as discussões sobre livre-cambismo e tarifas alfandegárias protecionistas deram-me os primeiros motivos para que me ocupasse com questões econômicas. Por outro lado, tinha-se nesse tempo — em que a boa vontade de ‘ir adiante’ repetidas vezes contrabalançava o conhecimento das questões — tornado audível na Gazeta Renana um eco do socialismo e comunismo francês, sob uma tênue coloração filosófica. Declarei-me contra esta remendaria, mas ao mesmo tempo confessei abertamente, numa controvérsia com o Jornal Geral de Augsburgo, que os meus estudos até essa data não me permitiam arriscar eu próprio qualquer juízo sobre o conteúdo das orientações francesas. Preferi agarrar com ambas as mãos a ilusão dos diretores da Gazeta Renana, que acreditavam levar a anular a sentença de morte passada sobre o jornal por meio duma atitude mais fraca deste, para me retirar do palco público e recolher ao quarto de estudo”.

Livro e filme são instrumentos para o conhecimento dos trabalhadores da realidade que nos cerca, hoje. Como disse Marx num debate com revolucionários, reproduzido no filme, “a burrice não ajuda a ninguém”. Ou, como afirmou um dos maiores pensadores brasileiros, Paulo Freire: “Se a educação sozinha não pode transformar a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda”.

Mudemos a sociedade. Um novo mundo, socialista, é possível. Proletários de todo o mundo, uni-vos!

*Carlos Pompe é jornalista da Contee (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino)


 Os artigos publicados na seção “Opinião Classista” não refletem necessariamente a opinião da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e são de responsabilidade de cada autor.

 

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