É impossível ouvir Belchior e não querer transformar o mundo num local bom para se viver

O Portal CTB presta homenagem ao poeta, cantor e compositor Belchior que nos deixou no dia 30 de abril, em Santa Cruz do Sul (RS). Uma verdadeira legião de fãs ficou atônita, mesmo com o autor cearense, nordestino, brasileiro, latino-amercicano estando fora dos palcos há muitos anos.

As suas músicas inundam a alma e o cérebro de quem sente e vê que o novo sempre vem. Um dos mais importantes porta-vozes de uma geração que foi à luta por liberdade e democracia. Que deixou os cabelos crescerem, vestiu minissaias, tirou sutiãs e rompeu barreiras, mesmo em tempos sombrios,

Impossível, portanto, ouvir Belchior e ficar impassível com as mazelas da vida. Impossível não querer mudar as coisas. Mesmo quando se deixa de ser como os nossos pais e passe a ser como os nossos tataravós.

“Já faz tempo eu vi você na rua cabelo ao vento gente jovem reunida

Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais

Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Como nossos pais” (Como nossos pais)

Poucos interpretaram como ele a juventude dos anos 1970 e 1980. Principalmente na vontade de transgredir a ordem patriarcal vigente. Cantando o social e o individual, o amor e a revolução, a utopia e a vida, tudo ao mesmo tempo e uma coisa de cada vez.

“Tenho vinte e cinco anos

De sonho e de sangue

E de América do Sul

Por força deste destino

Um tango argentino

Me vai bem melhor que um blues” (A palo seco)

A palo seco (Belchior)

O autor cearense morreu aos 70 anos, completados no dia 26 de outubro. Legou para a posteridade centenas de obras-primas da MPB.  Suas composições viajam do lírico ao épico com uma desenvoltura intrínseca à miscelânea de sons que unia Beatles, música regional nordestina, Bob Dylan, Luiz Gonzaga, bossa nova, música de nossos vizinhos latino-americanos.

“Moro num lugar comum, perto daqui, chamado Brasil.

Feito de três raças tristes, folhas verdes de tabaco

e o guaraná guarani.

Alegria, namorados, alegria de Ceci.

Manequins emocionadas:

– são touradas de Madri

…que em matéria de palmeira ainda tem o buriti perdido.

Símbolo de nossa adolescência,

signo de nossa inocência índia, sangue tupi.” (Retórica Sentimental)

De Sobral (CE) para o mundo, nada faltou à sua obra eternizada no imaginário popular. Cantou a vontade de superar a vida mesquinha, a vida contida, a vida sozinha. Falou de amor, de desamor, de dor, de relacionamentos que fomentam a vida, habitam os sonhos, os desejos, a pressa de viver e o poder da alegria.

“A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia

E pela dor eu descobri o poder da alegria” (Fotografia 3×4)

Fotografia 3×4 (Belchior)  

“Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja

Não quero o que a cabeça pensa

Eu quero o que a alma deseja

Arco-íris, anjo rebelde

Eu quero o corpo, tenho pressa de viver” (Coração Selvagem)

Levou o seu canto com a vontade de unir a América Latina contra os ataques do imperialismo e a sordidez do capital que desumaniza até as relações afetivas. Combateu com sua arte os preconceitos e o autoritarismo de uma sociedade atrasada, sob uma feroz ditadura.

“Não me peça que eu lhe faça

Uma canção como se deve

Correta, branca, suave

Muito limpa, muito leve

Sons, palavras, são navalhas

E eu não posso cantar como convém

Sem querer ferir ninguém” (Apenas um rapaz latino-americano)

Cantou o medo. O medo de pegar na mão da menina no amor adolescente, o medo do avião, mas sintonizou a profundidade do medo que paralisa e mumifica. Transpôs o medo de ter medo de ser feliz e chutou o balde da repressão e do individualismo, sublimando o sentimento de solidariedade, generosidade e superação.

“Eu tenho medo e medo está por fora

O medo anda por dentro do teu coração

Eu tenho medo de que chegue a hora

Em que eu precise entrar no avião” (Pequeno mapa do tempo)

Medo de avião (Belchior) 

“Foi por medo de avião

Que eu segurei

Pela primeira vez a tua mão

Agora ficou fácil

Todo mundo compreende

Aquele toque Beatle

I wanna hold your hand” (Medo de avião)

Sonhou, desejou, ensejou a vontade de ver um mundo igual, onde qualquer pessoa tenha a plenitude de andar sozinha e sem medo. Andar pelas ruas livres de amarras e preconceitos. A alma límpida e a mente viajante.

“No presente a mente, o corpo é diferente

E o passado é uma roupa que não nos serve mais

No presente a mente, o corpo é diferente

E o passado é uma roupa que não nos serve mais” (Velha roupa colorida)

Alucinação (Belchior) 

“Um preto, um pobre

Uma estudante

Uma mulher sozinha

Blue jeans e motocicletas

Pessoas cinzas normais

Garotas dentro da noite

Revólver: cheira cachorro

Os humilhados do parque

Com os seus jornais” (Alucinação)

Mostrou o poder da canção em cativar pessoas e conquistar corações e mentes. A vontade de superar o passado e viver o presente com os olhos no futuro. A força da felicidade como arma para derrotar a solidão e a opressão.

“O tempo andou mexendo

Com a gente

Sim!

John!

Eu não esqueço

(Oh No! Oh No!)

A felicidade

É uma arma quente” (Saia do meu caminho)

Saia do meu caminho (Belchior, interpretada por Margareth Menezes) 

“Eu quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno

Viver a divina comédia humana onde nada é eterno

Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso

Eu vos direi no entanto

Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não

Eu canto” (Divina comédia humana)

Não sucumbiu ao deus mercado, ao contrário se impôs. Não cedeu aos ditadores de plantão, resistiu. Sublimou as vicissitudes do seu povo em arte da maior qualidade.

“Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo

O mal que a força sempre faz

Não sou feliz, mas não sou mudo

Hoje eu canto muito mais” (Galos, noites e quintais)

Falar da morte de Belchior é impossível fugir do clichê de que ele nos deixou, mas sua obra está tatuada em nosso corpo, em nossa alma, em nosso sangue. Nem por ser clichê deixa de ser verdade.

Aparências (Belchior) 

“Aparências, nada mais,

Sustentaram nossas vidas

Que apesar de mal vividas têm ainda

Uma esperança de poder viver

Quem sabe rebuscando essas mentiras

E vendo onde a verdade se escondeu

Se encontre ainda alguma chance de juntar

Você, o amor e eu” (Aparências)

Quisera todos pudéssemos transformar nossos fantasmas, nossas dores, medos, alucinações em arte de tamanha qualidade.

Outro clichê: Belchior vive. Vive nas agruras de brasileiros e brasileiras que sonham construir o novo. Como Belchior cantou “vem viver comigo, vem correr comigo, meu bem”… 

Portal CTB – Marcos Aurélio Ruy

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